Sempre que publico um texto, há quem ache que estou falando de mim mesmo. E pior, que estou falando a verdade.
E talvez esteja mesmo. Mas esse não é o ponto. O meu. Porque o personagem que fala “eu” em uma crônica é sim o autor. Um autor personagem.
Uma vez Jorge Luis Borges estava procurando um livro na Biblioteca Universal e chegou um cara e perguntou:
“É verdade que naquele porão tem uma janelinha que mostra tudo que existe e existiu e existirá no mundo?”
“Veja”, disse Borges, que não podia fazê-lo. “O Aleph é um conto…”
“Como assim?”, insistiu o outro. “Quer dizer que é mentira?”
“Eu prefiro chamar de ficção”, explicou o escritor.
E assim é. Ficção. Algo que poderia ser verdade e poderia ser mentira, mas é apenas literatura. Um portal para o passado e o futuro e para a alma humana, esse presente.
Mas agora deu vontade de contar uma história verdadeira. Para vocês verem como soa.
Uma vez eu estava no sebo O Colecionador. Isso faz mais de vinte anos. Eu não sabia o que ler e fui lá procurar alguma coisa boa. Mas eu não sabia o que era uma coisa boa. Então eu pegava livros contando com a sorte.
Vi um bonito. Preto e vermelho. Capa dura. Barato. Jorge Luis Borges, o autor. Olha só, pensei. Aquele músico gaudério escreveu um livro. E levei para casa.
Só me dei conta de que o autor não era o Luis Carlos Borges quando era tarde demais. Eu já estava completamente envolvido com a História universal da infâmia e com as salivas que um livro bom como aquele geram: isso é verdade? isso é mentira?, diziam minhas papilas gustativas.
Então, sempre que alguém me pergunta se é verdade o que escrevi, eu fico faceiro, porque é sinal de que talvez eu tenha conseguido fazer literatura.
Agora vou contar uma mentira, para vocês verem como soa.
Entre o Colégio do Carmo e o Colégio São José existe um túnel, que pode ser acessado pelo porão da Livraria do Arco da Velha. Esses dias, eu estava lá dando uma oficina de tradução e, ao me escorar em um tijolo, percebi que ele estava frouxo. Retirei-o com cuidado e vi. Vi a relíquia atroz do que deliciosamente tinha sido Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu sangue escuro, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte. Vi o Aleph.
Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.
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