Neste clima de Copa do Mundo, é inevitável que a memória fique recheada de episódios vividos em outras Copas. Não apenas os acontecidos dentro das quatro linhas do gramado. Nas arquibancadas, e também longe delas, sempre acontecem fatos, e surgem personagens, que são lembrados, como são lembrados os gols de placa e seus goleadores.
A lembrança que vou compartilhar aqui é a da figura de um nativo de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, chamado Aldyr Schlee, de quem fui amigo pessoal. Ele entrou para a história do futebol porque foi quem criou o modelo da camiseta amarela para a seleção brasileira, que ganhou então o apelido de Seleção Canarinho. Ele havia participado do concurso organizado pelo jornal Correio da Manhã, e a camiseta por ele desenhada foi apresentada ao público numa festa no Maracanã, em 1954.
Nesse ponto já cabem algumas confidências dele. A primeira foi a de que ele nunca aceitou a expressão “tragédia do Maracanã” para caracterizar a derrota que o Brasil sofreu diante do Uruguai na Copa de 1950. “Morando em Jaguarão”, me disse ele, “joguei futebol com os uruguaios muitas vezes, dos dois lados da fronteira: ganhei e também perdi, mais de uma vez, e nunca achei que perder fosse uma tragédia”.
Outra revelação foi a de que escolheu a cor amarela para o uniforme da seleção por um motivo óbvio. Na Copa de 1950, o Brasil usara camiseta branca com detalhes em azul, quando o azul era a marca da seleção uruguaia, chamada de “Celeste Olímpica”, por suas façanhas históricas, bem antes do “Maracanazo” de 1950.
Aldyr Schlee era ainda estudante em 1953 e fazia caricaturas para um jornal de Pelotas, quando participou do concurso nacional e conquistou o prêmio, que lhe valeu um estágio no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, além de uma bela soma em dinheiro. A partir daí, completou seus estudos e fez carreira de jornalista, de professor universitário e de escritor, tendo publicado mais de uma dezena de livros de contos.
Foi quando ele era professor do Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre que nos conhecemos e travamos relações. Nas nossas conversas, o tema mais frequente era o das relações de fronteira, já que ele era um fronteiriço e seus contos têm também essa característica, de porem foco nos dois lados do rio Jaguarão.
Foi ele quem me chamou a atenção para o fato de que a cidade uruguaia do outro lado da fronteira, frente à cidade de Jaguarão, chama-se Rio Branco, em língua portuguesa, e não Rio Blanco, como seria em espanhol. A razão disso é que o Barão do Rio Branco definiu que a fronteira entre Brasil e Uruguai seria a linha imaginária do meio do rio Jaguarão, e não na margem uruguaia, como ficara definido desde a Guerra Cisplatina. Além de dar o nome de Rio Branco à cidade, o governo uruguaio fez construir uma belíssima ponte entre as duas cidades, sem custos para o Brasil.
Numa mesa redonda de que ambos participamos, envolvendo questões relacionadas com a cultura e a educação, ele afirmou que, mesmo sendo um fronteiriço, nunca viu a fronteira como divisão. Ao contrário: ele via as diferenças, mas se sentia como parte da mesma identidade. E acrescentou um comentário em tom jocoso: a única vez em que teve a sensação de ter cruzado uma fronteira foi quando esteve na Bahia. Foi lá que se viu num mundo diferente...
A última vez em que nos encontramos (ele faleceu há quatro anos, em 15 de novembro) foi num bar na Rua da Praia, em Porto Alegre. Ele pediu dois cafés e dois copinhos de água. Quando o pedido chegou à mesa, peguei o copo de água para beber antes do café e ele me cortou o gesto, dizendo:
- A água é para tomar depois do café, é assim que se faz no Uruguai.
- Mas isso tira o gosto do café – comentei com estranheza.
- Essa é a ideia – riu ele. – Tira a vontade de acender um cigarro!
Sabedorias de uma visão sem fronteiras...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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