Caxias do Sul 03/12/2024

Uma carta de escritora para escritora

Uma missiva especial em que a leitora comenta com a autora as impressões que sua obra lhe causam
Produzido por Marilia Frosi Galvão, 16/07/2020 às 17:59:13
Foto: ARQUIVO PESSOAL

ELENA FERRANTE é o pseudônimo de uma autora italiana, festejada pelo mundo afora como uma das mais belas prosas contemporâneas. Elena nunca mostrou o rosto, nem sequer deu alguma pista de sua verdadeira identidade. Após a leitura de sete de seus livros, endereço a ela, via artigo neste site (e a quem nos lê), estas linhas:

Carissima Signora Ferrante,

Um “terremoto interno” me abala à ideia de me comunicar com a Senhora para expressar os sentimentos que a sua obra suscitou em mim. Para explicar-me melhor, uso outras palavras suas – “as palavras fazem viagens imprevisíveis na mente de quem as lê”. Partilhamos da paixão pela literatura, a Senhora – Elena Ferrante -, uma das mais importantes autoras da atualidade, e eu, uma leitora apaixonada pelas suas histórias profundas e contundentes.

Enfrentando esse terremoto, principio com uma breve explicação, uma justificativa para o que direi mais adiante: todas as manhãs, ao acordar, espreguiçando-me e criando coragem para sair da cama, antes de levantar, planejo sobre o que farei durante o dia, porque meus planos, por enquanto, são de curtíssimo prazo. Mais de cem dias em casa, período de aquietamento forçado pelos cuidados de prevenção contra a Covid-19.

Só em sonhos, por enquanto, me imagino caminhando pelas ruas de minha cidade, abraçando as pessoas, sentindo a brisa a brincar com meus cabelos gris e o sol a aquecer-me por inteiro. Ironica e tragicamente, essa pandemia nos igualou - estamos todos vulneráveis. Todos. No mundo todo. Então, como se alcoólatra ou viciada em outras drogas, me condiciono - por hoje, só por hoje, afastarei os pensamentos negativos, eu ficarei feliz, em paz e tranquila, apesar de tudo.

Oggi, farei o que for bom para mim e para todos. Domani sarà domani – uma incógnita. Hoje é o que importa. Assim pensando, levantei animada – grazie – mais um dia em que estou saudável e com vontade de escrever... uma carta. Sim, uma carta. Pelo puro prazer de conversar com a Signora. Uma conversa de mulher para mulher. Por estranho que pareça, na metade do ano de 2020, no recolhimento de meu lar, creio ser esta a melhor maneira de expressar e comentar e agradecer e tecer alguns comentários sobre o impacto que a leitura de suas obras causou em mim.

A Senhora costuma dizer que já fez “tudo o que podia ter feito por seus livros, escrevendo-os”. Sua identidade jamais foi revelada, não comparece nos lançamentos das obras; entrevistas, somente por e-mail. Cogita-se seja uma mulher, ou um homem, ou um casal, até um grupo de escritores... enfim, quem seria essa escritora capaz de entrelaçar os sentimentos genuínos das personagens em histórias verossímeis no contexto político e nas mudanças na Itália após a Segunda Guerra Mundial?

Confesso que me encanta sobremaneira esse mistério. Escrever sob o pseudônimo “Elena Ferrante” e ficar longe dos holofotes!!! Nem debates, nem encontros, nem recebimento de prêmios. É claro que a Senhora tem fortes convicções e é fiel a elas. Respeito e considero essa escolha do anonimato tão surpreendente, tendo em vista o sucesso de público e crítica no mundo inteiro.

Eu a desvendo pelas suas histórias e personagens. Creio que somente uma mulher seria capaz de construir personagens femininas tão fortes, imperfeitas e complicadas, que erram e acertam, verdadeiras obras de arte. Minha voz se une às dos milhões de leitores que respeitam a sua misteriosa identidade e desejo de privacidade.

A Amiga Genial” (L’Amica Geniale) foi o primeiro livro que li. Embora tenha sido lançado na Itália em 2011, foi traduzido e oferecido ao público aqui no Brasil somente em maio de 2015. Dio mio!!!

Como não se entregar ainda no início da história (permita-me enfatizar), quando o filho de Lila Cerullo avisa a Elena Greco (a amiga de infância) que sua mãe desapareceu e pede ajuda para encontrá-la! Elena lembra que um dos maiores desejos de Lila era desaparecer completamente.

Decide, então, escrever sobre toda a vida que dividiram, desde a infância em um bairro pobre de Nápoles, adolescência e juventude até a maturidade. E esse recurso da escrita seria para frustrar os planos da amiga, sendo impossível deixá-la dissolver-se assim.

Eu-leitora, fisgada como um peixinho faminto, adentrei nesse universo mágico-literário da Tetralogia Napolitana. A Senhora não imagina com que ansiedade eu aguardava os que viriam a seguir: a “História do Novo Sobrenome” (Storia del nuovo cognome); “História de quem Foge e de Quem Fica“ (Storia di chi fugge e di qui resta) em 2016 e, finalmente, a “História da Menina Perdida” (Storia dela bambina perdida), que chegou às livrarias em 2017.

Com todo o respeito, gostaria de saber: seria uma coincidência os nomes, Elena (Ferrante) escritora, e Elena (Greco), personagem da série napolitana, também escritora? Ou seria seu alter-ego, uma vez que as dúvidas, inseguranças e esforços para tornar-se uma escritora são tão bem descritas? E essa “síndrome do impostor” da personagem Elena Greco, já a perturbou, em algum momento de sua carreira literária?

Cara Signora, quem de nós, mulheres, não teve uma amiga genial? Ou, melhor ainda, que maravilha sermos a amiga genial de alguém. Costumava tomar café com amigas, antes da “maledetta” Covid-19, para falarmos também sobre os livros lidos. Sinto falta desses dolci incontri.

Certo dia, Suzana De Carli, uma “amiga-leitora-genial” e eu, discutimos sobre a amiga genial - seria Elena Greco, nas palavras de Lila Cerullo? Ou seria Lila a amiga genial de Lenu? Gosto de pensar que as duas são amigas geniais, em momentos diversos de suas vidas, ora se unindo, ora se afastando, afinal, quem é a amiga genial de quem? Mi piace pensare... que Elena Ferrante é minha amiga genial.

Me rendi à história das duas amigas, Lenu e Lila, em suas andanças pelas ruas de Nápoles, em seus banhos quentes no mar de Ischia, em encontros e separações ou por afinidades ou por diferenças, casamentos, traições, filhos, percalços, enfim, na vida como ela é.

Por vezes, durante a leitura, deduzi - essas mulheres são verossímeis, tão reais. São como eu e tantas outras. Ah, como desejo, e estou programando uma viagem à Itália, quando tudo isso (a pandemia) passar. Nápoles está no roteiro. Será uma experiência e tanto percorrer as ruas e os bairros em que Lila e Lenu viveram suas vidas. A Piazza Garibaldi, a Via Chiaia, o café na Via Comunalle, a Piazza dei Martiri, o Vesúvio... e tante altre cose...

Mi scusi, Signora Elena, por mencionar que há uma sincronicidade entre nós - a senhora, Lila, Lenu e eu. Somos contemporâneas, nascemos após a Segunda Guerra, e de uma certa forma vivenciamos os mesmos momentos da história mundial.

Minhas origens estão na Itália, meus avós vieram de lá, em busca da cucagna. Cresci em uma região colonizada por italianos, no sul do Brasil, e carrego comigo a herança cultural da avó materna e da mãe, mulheres que se comunicavam em italiano – um dialeto, por certo, talian, sobretudo quando estávamos por perto, nós, as crianças. Entendíamos o que elas falavam, é óbvio.

Inclusive, esse sincronismo a que me referi antes, também se revela na universalidade das amizades, na busca pela justiça social e no conceito – “é transgressor ser mulher em um mundo comandado pelos homens”. Isso está muito claro nas histórias de seus romances, e as personagens femininas são complexas e complicadas. Nem sempre vencedoras, mas lutadoras.

Falar nisso, lembrei da minha avó, Mãe Marieta, dando conselhos à minha mãe, para preservar o casamento. As mulheres eram educadas para ficarem anônimas. As piores desgraças que poderiam acontecer a uma mulher seriam – ou não casar, ou casar grávida, ou ser abandonada pelo marido, tornar-se a poverella, a pobre coitada. “Amparada” era um termo usado pela minha mãe. A mulher casada estaria “amparada”, se mantivesse o casamento. Felizmente, o pai exigiu de nós, as três filhas, que estudássemos.

Olga, a protagonista do romance “Dias de Abandono” – deixada pelo esposo após quinze anos de casamento, com dois filhos e a carreira profissional interrompida -, causou em mim um desconcerto pelo sofrimento atroz dela, desespero, quase loucura, e pela luta corajosa que ela travou consigo mesma, para poder voltar a ser dona de seu destino. Recusou-se a ser a poverella – a pobre coitada abandonada pelo marido. Aprendi, com Olga, que as relações afetivas podem ser brutais, cabe a nós, somente a nós, reencontrar um sentido, assumir as derrotas para seguir adiante na vida.

E Delia – a narradora de “Um amor incômodo” (L’Amore Molesto) também me desconcertou já na primeira frase da história: “A minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, dia do meu aniversário”. A relação sempre tensa com a mãe veio à tona em forma de lembranças e a obrigou a repensar na infância e na imagem que construiu sobre sua mãe e sobre si mesma.

Adelia me tocou, também eu aprendi coisas sobre mim mesma. O que estava reprimido em mim, a leitura libertou, camadas mais obscuras, de foro íntimo. Alguma luz veio pelos temas tratados – maternidade – identidade – casamento – amizade. Grazie mille!!!

Cara amica scrittore! Haveria muito mais a falar. Amei o livro “Frantumaglia”, com entrevistas e o seu processo de escrita. Li outros livros seus. Aguardo ansiosamente a chegada de “La Vita Bugiarda degli Adulti” (A vida mentirosa dos adultos), prevista para setembro de 2020. E os filmes... e as séries... de seus romances. Em breve, poderemos assistir.

Adesso, o terremoto interno passou. Escrevi a carta. Deixei a alma transbordar. Ler a sua obra feroz e honesta, com personagens femininas fascinantes e reais, em suas dores e delícias, me ajudou a construir uma pessoa especial por dentro de mim, porque o corpo envelhece, mas podemos aprimorar a bagagem do que somos em nossa cabeça, nossa alma. Bene, me alonguei demais. Espero não lhe ter causado tédio, cara mia, meravigliosa, brava persona Elena Ferrante.

Com sentimentos de afeto, simpatia, gratitudine e ammirazione,

Dico addio,

Con un grande abbraccio,

Marilia Frosi Galvão

Marilia Frosi Galvão é professora, escritora e cronista

mailgalvao.marilia@hotmail.com

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