Dentre os escritores vênetos do século passado, outro nome merecedor de atenção é o de Mario Rigoni Stern, autor do romance O Sargento na Neve, “que se impõe como um dos clássicos contemporâneos mais amados de nossa literatura, além de ser o núcleo de origem de todas as seguintes obras do escritor”, na avaliação de Eraldo Affinati, crítico literário e ensaísta nascido em Roma em 1956.
A trajetória biográfica de Mario Rigoni Stern esteve toda ela ligada às experiências do dia a dia da guerra no front. Ele nasceu três anos apenas depois da Primeira Grande Guerra, a 1º de novembro de 1921 em Asiago, que fica na província de Vicenza, na região do Vêneto. Depois dos estudos primários e secundários, com dezoito anos de idade, alistou-se como soldado. No ano seguinte, em 1940, a Itália de Mussolini declarou guerra contra a França, a Inglaterra e a Grécia. Rigoni Stern participou das operações de guerra contra a França e contra a Grécia, e em dezembro foi promovido a sargento.
No ano seguinte, fez treinamento para lutar no front russo, enfrentando a neve (o sargento na neve!), e em janeiro de 1942 foi enviado para a Rússia, onde assumiu o comando da trincheira italiana perto do rio Don. Com o rompimento do pacto italiano com Hitler, em 1943, teve de comandar a retirada de seu batalhão, quando perdeu seus amigos mais próximos, antes de chegar à Polônia. Ali, se declarou contra o regime de Mussolini e ficou vinte meses preso em diversos Lager (Campos de Concentração Nazistas), sendo depois transferido para trabalhar numa mina na Áustria
Com o término da guerra, em 1945, retornou da Áustria para Asiago e renunciou à carreira militar, dedicando-se totalmente à produção literária. Em 1953, saiu o seu romance O Sargento na Neve, com o subtítulo Lembranças da Retirada da Rússia, traduzido, já no ano seguinte, na França, na Inglaterra e na Alemanha.
Mario Rigoni Stern (1921 - 2008)
(Foto: Divulgação)
Como observa Eraldo Affinati, “Bastaria reportar o incipt para entrar no clima que o romance propõe: Tenho ainda no nariz o cheiro da graxa do fuzil metralhadora em brasa”.
Essa é a primeira frase. A segunda é esta: "Tenho ainda nas orelhas e até dentro do cérebro o barulho da neve que estalava debaixo das botas, os surtos de tosse das sentinelas russas e o som das ervas secas batidas pelo vento nas margens do Don".
Ao lado desses elementos do cenário, Rigoni Stern relata detalhes do dia a dia na frente de combate, dividida em duas partes: dentro da trincheira e fora dela. Não sem um bom grau de humor, como nesta passagem:
"As únicas coisas vivas, animalmente vivas, que sobraram na vila, foram os gatos. Não havia gansos, galinhas, vacas, só gatos. Gatos gordos e rabugentos que vagavam entre as ruínas das casas caçando ratos. [...]
No Natal eu queria comer um gato e fazer com a pele um gorro. Montei uma armadilha, mas eram muito espertos e não se deixavam prender. Poderia ter matado um com um golpe de mosquete, mas penso nisso só agora, e agora é tarde. Dá para ver que eu estava obcecado em só querer pegar um gato na armadilha, e assim não comi polenta e gato nem fiz gorro com o pelo".
Eis outro livro que merece ser traduzido, pela minúcia com que constrói a experiência do estranho mundo de um front de guerra, onde não faltava nem a polenta vêneta...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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