Os nomes mais lembrados da poesia italiana do século XIII – il Duecento – são os de Dante e Petrarca. Mas os dois tiveram como mestre o poeta Guido Cavalcanti (1255-1300), que não deixaram de elogiar. Por esse motivo, fui também procurar sua poesia e, para degustar em cheio seu sabor, traduzi suas canções, baladas e sonetos, num total de 52 Rime, que foram salvas em arquivos de Roma, Veneza, Florença e Pádua.
O sobrenome Cavalcanti deriva do fato de que nasceu numa família de cavaleiros, tradição iniciada com seu bisavô, em defesa do papado. Ainda jovem, Guido estudou filosofia na universidade de Bolonha, onde conheceu os pensadores aristotélicos Avicena e Averróis.
Para dar um exemplo de sua poesia, fiquei em dúvida entre sua canção mais famosa, Donna mi prega, em que desenvolve uma teoria escolástica sobe o Amor, ou um soneto ou uma balada, nos quais dá um tom mais sensitivo. Modelo que inspirou a poesia provençal e, por decorrência, também a galego-portuguesa.
Escolho então uma balada, Fresca rosa novela, que as editoras atuais colocam como o primeiro poema de sua antologia. É um poema também muito apreciado por Dante, que no seu Vita Nuova, diz: “segundo se crê, (o poeta) deu à sua amada o nome de Primavera e assim a chamava”. Portanto, a “querida primavera” (piacente Primavera- v.2) desta balada não é uma figura retórica, mas o nome atribuído por Guido Cavalcanti a sua amada, cujo nome real era Vanna, ou Giovanna.
Guido Cavalcanti (Reprodução)
Como se pode observar, o poema é cheio de imagens líricas, colhidas da verdura, mas conclui com uma consideração filosófica sobre a essência da natura de sua amada. São três estrofes de treze versos cada uma.
Fresca rosa em botão,
querida Primavera,
por prado e por ribeira
vou gaiamente cantando,
vosso valor louvando – na verdura.
Vossa cara fineza
se renove aos carinhos
de homens e menininhos
nas vias da redondeza;
cantem os passarinhos,
cada um com sua destreza,
manhã e tarde acesa
nos verdes arbustinhos.
Todo o mundo cante
pois que a estação é bem
tal como convém
a uma alteza tal:
pois sois angelical – oh criatura.
De um anjo a semelhança
em vós, senhora, pousa:
Deus, como venturosa
foi minha esperança!
Vossa face formosa
que ultrapassa e avança
sobre natura e usança
é sim maravilhosa.
Entre as mulheres deusa
vos chamam, e é verdade;
tanta é vossa beldade
que eu não sei contar;
e quem pode pensar – além natura?
Mais que a natura humana
vossa fina aparência
a fez Deus: por essência
é que sois soberana;
que então vossa presença
perto me seja e lhana;
não seja ora tirana
a doce providência!
E se parece ultraje
me pôr a vos amar
não queirais condenar:
é o Amor que me força,
contra ele não há força – nem mesura.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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