Quando Italo Balen escreveu seu precioso livro Os Pesos e as Medidas – a que deu o subtítulo de Poemeto Caxiense da Década de Vinte –, sua intenção era, como deixou registrado em dedicatória “Ao Leitor”, oferecer sua modesta participação para dar testemunho “de um dos aspectos básicos da cultura de Caxias de antanho”.
Por volta de 1920 e 1930, nessa “Caxias de antanho”, todos falavam, além do português, uma segunda língua, identificada então simplesmente como “dialeto”, e que era uma mistura de diferentes dialetos locais trazidos da Itália, com predominância absoluta do vêneto, junto com palavras retiradas da língua portuguesa.
A obra fundamental de Italo Balen
Moysés Vellinho, que escreveu o prefácio do livro, conta que, desde 1912, guri ainda, tropeçava nas pedras soltas e escorregava no barro das ruas de Caxias, que “não passava de uma cidade de tábua”. Moysés Vellinho veio para Caxias quando era intendente João Penna de Morais (1912-1914), seu padrinho, e tio por parte de mãe. Mais tarde voltaria a Caxias como promotor público, entre os anos de 1925 e 1930.
Esse mesmo testemunho, da existência de uma segunda língua geral em Caxias, é dado por Vellinho. Transcrevo o parágrafo inteiro: “Seria pena que, do ponto de vista do processo aculturativo, tudo se fosse perder com o tempo, e se desmanchar de todo, se alguém, de ouvido alerta, mais interessado nos fatos de natureza cultural que no sacrifício inevitável das araucárias e na faina das serrarias, não andasse recolhendo e guardando, antes que fosse tarde demais, o rude e saboroso falar em que as primeiras levas se entendiam”.
Observe-se sua ironia a respeito das leis que preservam as araucárias e, de outro lado, não cuidam da preservação de um patrimônio cultural, como as línguas. Isso escrito pouco antes de seu falecimento, ocorrido em 1980. Mas as coisas vão mudando também nisso. Desde que a Unesco lançou um alerta mundial sobre a necessidade de salvar as línguas em extinção e sobre a importância de ser preservada a diversidade linguística, o governo brasileiro vem adotando medidas nesse sentido.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que atende pela sigla IPHAN, implantou, na virada do século, um programa de inventário da diversidade linguística brasileira: nele estão contempladas, além das línguas indígenas, afro-brasileiras e de sinais, também as línguas de imigração.
Por uma dessas circunstâncias que seriam do acaso, se o acaso existisse, coube a mim, que em minha infância sequer ouvi uma palavra que não fosse em português, coordenar o trabalho de inventário nacional do Talian, nome já oficialmente adotado para designar a variedade linguística criada nas colônias italianas do Rio Grande do Sul e daqui disseminada, com as migrações, para grande parte do território nacional.
Sob o guarda-chuva da Universidade de Caxias do Sul, e com a parceria do Instituto Vêneto de Caxias do Sul, criado por Luís Brambatti, uma equipe empolgada de pesquisadores trabalhou com a certeza de estarmos todos fazendo história.
O êxito do trabalho foi total. Em novembro de 2014, o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN – acolheu o pedido e o Talian foi reconhecido oficialmente como integrante do patrimônio linguístico brasileiro, na categoria das línguas de imigração. A primeira a chegar ao pódio! Uma vitória tanto mais emocionante quanto mais se sabe a restrição que essa língua teve no passado, levando-a à beira da extinção.
Mas para que o Talian se mantenha como língua viva, não basta o reconhecimento oficial. Ele deve ser posto de volta nas ruas, nas casas, nas escolas, nos meios de comunicação. Sem acanhamento. Ao contrário, com a consciência de que estamos dando valor a um tesouro do maior preço.
Defendo, inclusive, a criação de uma instância em nível nacional, que facilite o intercâmbio entre falantes e promotores do Talian e permita a articulação de estratégias conjuntas que evitem a excessiva fragmentação.
Tal instância poderia chamar-se Instituto Nacional do Talian, que integraria vários tipos de participantes: universidades que tenham alguma vinculação, de caráter histórico, geográfico ou de pesquisa, com o Talian; entidades culturais e sociais de todo o país que tenham como objetivo a preservação do patrimônio cultural da imigração italiana; órgãos de comunicação que mantenham programas de valorização do Talian e, também, pessoas isoladas, como professores, estudiosos, artistas e outros interessados.
Ainda chegaremos lá!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
pozenato@terra.com.br
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