Por Eulália Isabel Coelho
Carlitos traz a poesia da pantomima em sua alma triste/cômica. Em seu corpo bailado de mesuras com sua bengala de bambu e o chapéu coco. Encantamento que o tempo nunca desbota, cuja expressividade autêntica, ingênua e espontânea converge para um único homem: Charles Chaplin. Esse nome que é sinônimo de perfeccionismo e genialidade.
É admirável que O Garoto faça cem anos sem perder o viço, ao contrário, ganha ainda mais em frescor por sua narrativa sincera. Revê-lo é arrebatador, e olha que já o fiz incontáveis vezes. O enredo é simples: uma mãe abandona seu bebê por não ter como criá-lo, o vagabundo o encontra, dá-lhe nome e um lar (sim, é um lar). Ela tenta resgatá-lo, mas já não o encontra.
Decorrem cinco anos, Carlitos e John (nome dado à criança) têm um laço único, são pai e filho, amigos inseparáveis, trambiqueiros de primeira. Seres humanos em busca de alimento e algum conforto material e mesmo espiritual. Dois sujeitos em completude.
Assim é o fio condutor dessa trama narrada com o coração. Não à toa no início da obra consta a seguinte epígrafe: “Um filme com um sorriso e, talvez, uma lágrima”. A obra que verte emoção aliada à comicidade é considerada a primeira comédia dramática da história do cinema.
Trapaceiros unidos pelo afeto e pela pobreza
O Garoto nasce depois de um período de bloqueio criativo de Chaplin, em luto pela morte de seu primeiro filho recém-nascido. Ele sabia que a inventividade poderia amenizar sua tristeza. Então, surge em sua mente a figura do Garoto e ele o vê em um teatro, fazendo mímicas com seu pai. Aquele menino de cinco anos tinha de interpretar o personagem de seu filme. Seu nome: Jack Coogan.
Chaplin realizou o filme, em 1921, nos estúdios da First National. Seu filme mais pessoal, inspirado em sua infância miserável, nas ruas de Londres, foi trabalhado exaustivamente. Depois de seu primeiro longa, O Casamento de Carlitos (1914), ele havia se dedicado a dezenas de curtas. Cogita-se que O Garoto seria mais um, porém, Chaplin expandiu o projeto após iniciá-lo.
O Garoto vivido pelo ator mirim Jack Coogan
Essa foi a primeira e única vez que o ator e diretor dividiu o protagonismo em um filme. O menino Coogan, empático e divertido, ungiu a tela com seu talento precoce, assim como Chaplin o fez nos palcos com a mesma idade, ao lado da mãe, cantora e bailarina. Sobre ela, Hannah, escreveu em sua autobiografia, “Minha Vida”:
“Duvido que, sem a minha mãe, conseguisse ter êxito na pantomima. É a mina mais prodigiosa que vi até hoje... Foi olhando-a e observando-a que aprendi, não só a traduzir emoções com o rosto e o corpo, como a estudar o homem.”
O menino Jack Googan fez o mesmo em relação a Carlitos: aprendeu seus trejeitos, sua doçura e espontaneidade, tornando-se um mini-Charlot. Sua presença na tela é tão convincente que ficamos realmente tocados. Sua empatia faz com que queiramos abraçá-lo e beijá-lo como o faz Carlitos na icônica cena do resgate no carro do orfanato.
O resgate d'O Garoto, uma das mais belas cenas
Estão presentes na obra personagens recorrentes na filmografia de Chaplin, como o policial que persegue o vagabundo, representação do Estado opressor. Carlitos debruça-se sobre o universo dos mais fracos, dos que sobrevivem sem perder a pureza. Uma utopia pela qual ansiamos, a do sujeito livre, que, não sendo parte da burguesia, consegue manter seu espírito intocado pelo capitalismo. Em Tempos Modernos (1936) isso ficará claro.
Chaplin assim descreveu seu personagem Carlitos:
“É preciso que você saiba que este tipo tem muitas facetas: é um vagabundo, um cavalheiro, um poeta, um sonhador, um sujeito solitário, sempre ansioso por amores e aventuras. Ele seria capaz de fazê-lo crer que é um cientista, um músico, um duque, um jogador de polo. Contudo, não está acima das contingências, como a de apanhar pontas de cigarro no chão, ou de furtar um pirulito de uma criança. E ainda, se as circunstâncias o exigirem, será capaz de dar um pontapé no traseiro de uma dama, mas somente no auge da raiva".
Modos à mesa ao dividir o alimento
A soma de Carlitos e John resulta em um bem-acabado enlace, no qual a pobreza não vislumbra maiores posses, exceto o amor. É através dele que os personagens seguem sua vida cotidiana, com aventuras burlescas e singular aconchego.
Os versos de Carlos Drummond de Andrade, do poema “Canto ao Homem do Povo – Charles Chaplin”, muito bem expressam o que quero dizer:
“Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens – e te descobriram e salvaram-se”.
Chaplin e Coogan em intervalo das gravações
FICHA TÉCNICA
O Garoto (The Kid, EUA, 1921)
Direção, roteiro e produção: Charlie Chaplin
Elenco: Charlie Chaplin, Edna Purviance, Jackie Coogan, Baby Hathaway, Carl Miller, Granville Redmond, Tom Wilson, May White
Trilha Sonora: Charles Chaplin
Duração: 50 minutos
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DE OLHO NO SET
Com orçamento de US$ 250 mil, o filme foi rodado em cinco meses e meio (um tempo longo para a época) devido ao perfeccionismo de Charles Chaplin.
A trilha sonora de O Garoto foi composta por Chaplin somente em 1971 e inserida em uma nova versão do filme, editada por ele.
Jack Googan tornou-se uma celebridade, viajou o mundo em função de seu personagem e ganhou milhões, dinheiro todo gasto por sua mãe e seu padastro.
Googan ficou esquecido por muitos anos, só voltando aos holofotes na sitcom A Família Addams (1964-1966), como Tio Funéreo (Uncle Fester, no original).
No cinema, o ator fez pontas em papéis de xerifes, detetives ou bêbados, em filmes B, a maioria deles slasher (subgênero de filmes de terror feitos com baixo orçamento). Sua última atuação foi em Depredador (The Prey, 1984).
Chaplin entrou pela primeira vez em cena aos cinco anos, quando sua mãe adoeceu e não pode subir ao palco. O pequeno Charlie imitou seus movimentos conquistando a plateia, que lhe jogou moedas.
O ator prezava por sua liberdade criativa e por isso fundou a United Artists junto com D.W. Griffith, Douglas Fairbanks e Mary Pickford. A United foi o primeiro estúdio comandado por artistas.
Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora
bibacoelho10@gmail.com
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