Um nome inesquecível, que também marcou a trajetória cultural dos 150 anos de imigração italiana, foi o de Mário Gardelin (1928-2019). Para reforçar nossas relações de amizade, ele lembrava que nós dois somos naturais de São Francisco de Paula. Até mesmo num livro de sua autoria escreveu esta dedicatória: “ao meu mestre e conterrâneo de Cima da Serra”. Acontece que ele nasceu no distrito de Vila Seca, que não pertencia ainda a Caxias do Sul.
Mais conhecido como jornalista, foi um grande pesquisador da história da imigração italiana, da história de Caxias do Sul e da história da Câmara de Vereadores local, de 1892 a 1950, acumulando um manancial de publicações. Mas dentro de seu perfil cabia também o papel de escritor, como poeta e ficcionista, sendo inclusive um dos fundadores da Academia Caxiense de Letras.
Sua obra literária de maior destaque, em minha opinião, é a narrativa em língua Talian com o título de Far la Cucagna. Foi publicado em 2003 pela EST Edições de Porto Alegre, com prefácio (na realidade Presentassion) de Rovílio Costa (1934-2009), outro gigante na construção da pirâmide da memória dos 150 anos da imigração italiana no RS. Nessa apresentação, justifica o título da obra de Gardelin com estas palavras:
“El sogno de catar la cucagna el se ga fato vero al Far la cucagna”: (o sonho de buscar a cocanha se tornou realidade ao se fazer a cocanha)...
O autor informa na orelha do livro, entre outros fatos, o seguinte:
“A narrativa Far la Cucagna está vinculada à Sucursal do Jornal do Comércio, de Caxias do Sul. Foi-me aberta a possibilidade de escrever em Talian. Comecei em 7 de fevereiro de 1989. Segui normalmente até 5 de julho seguinte. Aí foi encerrada a publicação de meus textos. A razão invocada: ninguém, na redação, entendia o Talian. (...) O Jornal do Comércio foi o primeiro diário que abriu espaço ao Talian. Teve leitores entusiasmados”.
A narrativa se compõe de 54 textos, cada um deles em formato compatível com uma coluna de jornal, numa sequência narrativa que tem início na Itália. A família Alba faz todo o percurso, desde sua saída, com o capítulo Fioi, se parte (Filhos, vamos partir!), até sua conclusão com o capítulo Monumento, coisa que nenhum dos imigrantes, poareti, iria imaginar:
“Poareti, si, parché i gávea vinto, sensa saverlo. Robe de tere nove”: (Pobrezinhos, sim, porque tinham vencido sem saber disso. Coisa de terras novas).
Além de ser uma galeria de memórias, o livro Far la Cucagna tem também todo o caráter de um ensaio antropológico. Nele, Mário Gardelin explora não apenas as surpresas com o mundo físico da floresta e do campo, mas, de modo especial, as surpresas das relações com a variedade cultural encontrada, com ênfase particular na presença dos negros que Na volta ghe zera schiavi: (uma vez eram escravos).
É evidente que, para captar as minúcias do percurso dos imigrantes nessa narrativa, é necessário ler toda ela, o que, para os que dominam o Talian, é um belo estímulo para a inteligência...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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