No início da década de oitenta, foi Ministro da Educação e Cultura o general Rubem Ludwig, um gaúcho de Lagoa Vermelha. Como secretário geral do ministério, foi nomeado o coronel Sérgio Mário Pasquali, outro gaúcho, nascido em Guaporé: os dois descendentes de imigrantes, um de alemães, outro de italianos.
Sérgio Pasquali teve, entre outros méritos, o de ter sido o idealizador do Projeto Rondon, destinado a harmonizar as diferentes culturas espalhadas pelo país, com a participação das universidades e de outras instituições de ensino superior.
Em visita que fez à Universidade de Caxias do Sul, quando secretário geral do MEC, estava havendo, no Bloco H, uma exposição fotográfica organizada pelo Projeto ECIRS. Nessa exposição era mostrada a paisagem e a arquitetura das colônias italianas, e também seus afazeres do dia a dia: uma velhinha fazendo trança de palha de trigo, um homem plantando milho, meninas com cestas de flores numa capela do interior, e outras maravilhas para os olhos. Quem quiser ver um pouco desse acervo de imagens pode encontrá-lo no livro ESTAÇÕES – Imagens da Cultura de Imigração Italiana no Rio Grande do Sul, publicado pela EDUCS em 1985.
O Coronel Pasquali, como era chamado, ficou comovido com a mostra, que trazia à tona também as suas raízes de colono em Guaporé. E na mesma hora decidiu que a UCS deveria levar a exposição para Brasília, para ser exibida no Teatro Nacional.
Dá para imaginar a empolgação que se seguiu para organizar o evento na capital da República. O Projeto ECIRS teve para isso duas colaborações importantes. Uma foi a do curso de Gastronomia da escola do Senac de Caxias do Sul, que assumiu a tarefa de servir um coquetel de sabor italiano. Outra foi de um coral de Flores da Cunha, regido pelo maestro Félix Slaviero, dedicado a preservar cantos trazidos da Itália pelos imigrantes.
A exposição foi um sucesso total, com registro em toda a imprensa brasiliense. Um texto que escrevi para a ocasião, com o título de “Elogio da Diversidade”, chegou a ser publicado integralmente num jornal.
Mas o episódio que dá título a esta crônica aconteceu no final da cerimônia de abertura da mostra, feita no início da noite.
Estava sendo servido o coquetel, com o fundo musical do coro de Flores da Cunha, quando apareceram algumas pessoas descendo a escada que dava para o piso de cima. Detalhe: a mostra fotográfica foi feita no saguão de entrada do Teatro Nacional.
E o que desejava a curiosidade daquelas pessoas? E quem eram elas?
Ficamos então sabendo que naquela noite estava havendo no Teatro Nacional um simpósio, com a presença de Gilberto Freyre, para marcar os cinquenta anos da publicação do livro Casa Grande & Senzala, de sua autoria. E fomos informados de que Gilberto Freyre manifestara interesse em ouvir os cantos da tradição italiana. Não tenho certeza se o coral subiu ou não para atender à vontade do mestre.
Mestre, sim. Mestre de todos nós que criamos o Projeto ECIRS, em 1974, na véspera do centenário da imigração italiana, destinado a documentar com método e a interpretar antropologicamente a cultura provinda da imigração italiana. A sigla do Projeto esconde este longo título: “Elementos Culturais das Antigas Colônias Italianas do Nordeste do Rio Grande do Sul”. Minha contribuição nessa pequena epopeia ficou registrada também num livro: Processos Culturais – Reflexões sobre a dinâmica cultural.
Casa Grande & Senzala foi o marco inicial dos estudos de antropologia social no Brasil. Antônio Cândido, outro de nossos grandes mestres, escreveu que os brasileiros “aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil, sobretudo em termos de passado, em função de três livros: Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola superior. "São estes os livros que podemos considerar chaves”. Frase que deve ser sublinhada! Os três, e não podia ser diferente, estão aninhados em minha estante.
A cerimônia de abertura da mostra fotográfica, com o selo do ECIRS e da UCS no Teatro Nacional de Brasília, terminou, portanto, com a emoção de uma bênção: a do pai dos estudos de Antropologia Social no Brasil. Só faltou nos ajoelharmos diante dele!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
pozenato@terra.com.br
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