Ao longo da minha carreira, tive a sorte e felicidade de encontrar e aprender com muitas pessoas especiais. Pessoas que, de um infortúnio ou dificuldade, transformaram aquele momento em ensinamento de vida e, até, benefícios para os demais.
Uma dessas pessoas com quem tive o prazer de conviver foi Jorge Lettry (1930 - 2008), nascido na pequena cidade italiana de Ivrea, na região de Piemonte, próximo a Milão.
Com suas mãos mágicas, dirigidas por um cérebro insuperável em criatividade e muita competência, Jorge Lettry transformou-se em referência importante para a indústria automobilística brasileira e as competições. Ele participou do desenvolvimento e construção do Carcará, único carro brasileiro de recordes de velocidade, conquistando a marca de 212,013 quilômetros por hora. Da Vemag, Lettry ingressou, como sócio, da Lumimari (renomeada Puma Veículos e Motores S.A.), participou ativamente do desenvolvimento dos carros GT Malzoni, Puma GT, Puma GT 1500 e Puma GTB Chevrolet e outros modelos para corridas.
Mas, suas habilidosas mãos foram atingidas em um acidente, justamente com o seu veículo, um jipe Toyota. Após se aposentar e aplicar o seu talento na produção de chocolates, em Monte Verde, para onde se mudou, em uma chuvosa noite teve um pneu furado. Sozinho e sobre a lama de uma estrada não pavimentada, enfrentou a missão de troca da roda.
Ao soltar o parafuso - que permitiria a retirada do estepe -, a gaiola que abrigava a pesada roda soltou-se e, sem sistema de proteção, caiu sobre as suas mãos, decepando a falange do dedo médio de sua mão direita. Apesar da dor, do desconforto sob a chuva e da solidão, Jorge instalou o estepe e foi procurar socorro médico.
Por sua experiência automotiva, no dia seguinte, dedicou-se a analisar o sistema adotado pela Toyota para acomodar o estepe e notou a falta de um recurso de proteção que evitaria acidentes dessa natureza. E foi visitar a Toyota, em São Bernardo do Campo, levando consigo um esboço com sugestão de modificação que evitaria infortúnios dessa ordem, semelhante ao adotado no pequeno caminhão Mercedes-Benz 608D, em que a bandeja para a mesma finalidade é articulada aproximadamente na sua metade, ficando em balanço mesmo que a porta-borboleta chegue ao final da rosca.
No Toyota, a articulação era na extremidade dianteira da bandeja.
Jorge informou que o funcionário da Toyota que o atendeu justificou que as reclamações sobre o sistema eram de apenas 2% dos proprietários e que, por isso, não justificaria qualquer alteração no projeto da fábrica.
Inconformado, Jorge Lettry contou o fato ao seu grande amigo Bob Sharp, na época editor de testes e técnica da revista Oficina Mecânica, que ficou perplexo com o que ouviu do amigo e lhe sugeriu mover ação contra a Toyota, oferecendo-se para preparar um laudo técnico. Bob Sharp, também piloto, experiente profissional com elevados conhecimentos de engenharia e de conduta impecável, preparou um documento técnico em defesa de Jorge Lettry.
No dia da audiência em juízo, mal o juiz leu as iniciais da ação, o advogado da Toyota interrompeu o juiz e disse “fazemos acordo”, e que a empresa concordava em indenizar Lettry com a soma equivalente a 50 mil dólares americanos — naturalmente aceita por ele.
Jorge Lettry veio para o Brasil com apenas um ano de idade, quando seus pais emigraram para o Brasil em 1931, trabalharam no hotel Atlântico, em Santos, e depois instalaram o próprio hotel com o nome de Tibiriçá. Cresceu revelando as virtudes de aplicação, rigor com as coisas corretas e muito preocupado com a perfeição.
Depois de completar os estudos fundamentais, até o nível científico, equivalente ao Segundo Grau, com o falecimento de seu pai, em 1947, sua família decidiu mudar-se para São Paulo, inicialmente instalando-se no bairro da Penha e, algum tempo depois, mudou-se para Santo Amaro. A proximidade com o Autódromo de Interlagos fê-lo descobrir como seria o seu futuro.
Movido pelo seu forte desejo, procurou trabalhar com automóveis e conseguiu uma vaga na revenda Volkswagen Sabrico. Logo em seguida, e por intermédio das amizades conquistadas, transferiu-se para a Bruno Trees e soube de um curso de mecânica na Brasmotor, que realizou, encantando-se com os veículos alemães e os motores boxer.
O destino que a vida prepara às pessoas, especialmente às que se empenham com alma e coração, proporciona surpresas e oportunidades como um reconhecimento de Deus aos que se aplicam com muita dedicação e seriedade. Ao mudar de trabalho para a seção de ferramentas das lojas Sears, Roebuck, teve a sorte de conhecer um colega que se tornou um dos melhores pilotos do país: Christian Heins que, pouco tempo depois, ingressou na Willys-Overland do Brasil, onde foi piloto e chefe da equipe de corridas.
Esse novo universo na sua vida Jorge Lettry levou-o a se relacionar com pessoas como ele, amantes de mecânica automotiva. E, com Eugênio Martins, um de seus novos amigos, criou a empresa Argos Equipamentos, na Rua Butantã, em Pinheiros, ponto de encontro de pilotos, mecânicos e fãs do automobilismo.
Jorge Lettry teve na Argos o terreno fértil para se tornar referência para a preparação de carros de rua e para competição.
Os conhecimentos de Lettry o levaram a desenvolver o Volkswagen 1200 1952 de Eugênio Martins para competir na primeira Mil Milhas Brasileiras, em 1956, prova que faria história no País, idealizada e criada por Eloy Gogliano, presidente do Centauro Motor Clube e Wilson Fittipaldi, radialista da Rádio Panamericana (atual Jovem Pan), pai de Wilsinho e de Emerson.
O “segredo” que Lettry tinha para o Fusca ser competitivo era seu conhecimento técnico e, estudioso que era, viu que no item ‘Motor’ do regulamento da prova a preparação era livre desde que mantido o bloco original. Como naquele tempo os motores dos Porsches utilizavam carcaça de Volkswagen 1200, o motor do Fusca daquela Mil Milhas era Porsche 1500 com dois carburadores Weber 40 IDA duplos. E, para assegurar durabilidade, Lettry aplicou sistema de lubrificação por cárter seco com radiador de óleo na extremidade dianteira sob o capô com duas aberturas para captar o indispensável ar.
A nota curiosa é que esse capô era de plástico reforçado com fibra de vidro e feito por ninguém menos que João Augusto Conrado do Amaral Gurgel. Somente poderosos especialistas.
Jorge Lettry (D) incrementou o automobilismo competitivo no país (Foto: Divulgação/Site Autoentusiastas)
O Fusca criado por Jorge Lettry causou surpresa porque liderou metade da corrida e só não foi o vencedor devido à quebra do cabo do acelerador no retão, obrigando o piloto Christian Heins a ir lentamente até o box para colocar um cabo novo, perda de tempo que permitiu que o Ford V-8 Carretera dos gaúchos Catharino Andreatta e Breno Fornari assumissem a ponta e vencessem, com o Fusca se classificando em segundo lugar provocando muito entusiasmo ao público e até pelas equipes adversárias.
O resultado repercutiu fortemente e Jorge Lettry acabou convidado para trabalhar na Vemag em 1958, no início da indústria automobilística no Brasil. Logo assumiu a chefia do departamento de testes da fábrica, mas não tardou a desenvolver o DKW-Vemag para competições, onde seus dedos ágeis, sob a regência de inteligência privilegiada, criaram inovações, além do desenvolvimento de carros com pequeno motor de 1.000 centímetros cúbicos de cilindrada, desenvolvidos em conjunto com o engenheiro alemão Otto Kuetner, que enfrentaram com igualdade automóveis com motores cinco vezes maiores, conquistando muitas vitórias.
O prestígio de Jorge Lettry ultrapassou a fronteira, com diversas vitórias na cidade de Rivera, no Uruguai, onde seus olhos vivos fizeram-no se encantar com a ideia de um piloto local que desenvolveu um Dyna-Panhard com distância entre eixos reduzida que melhorava o desempenho do automóvel em circuitos de ruas, muito comum no Brasil até o final da década de 1960.
Ao regressar ao Brasil, aplicou a ideia num DKW, da equipe Vemag, que foi batizado de Mickey Mouse. A distância entre-eixos do DKW foi encurtada de 2.450 milímetros para 2.150 milímetros.
Luiz Carlos Secco trabalhou, de 1961 até 1974, nos jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, além da revista AutoEsporte. Posteriormente, transferiu-se para a Ford, onde foi responsável pela comunicação da empresa. Com a criação da Autolatina, passou a gerir o novo departamento de Comunicação da Ford e da Volkswagen. Em 1993, assumiu a direção da Secco Consultoria de Comunicação.
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