Chegamos em setembro. Os brotos das videiras desabrocham nesta nova estação que chega de mansinho - a primavera. Porém, há uma certa melancolia na despedida deste inverno.
Apesar da aparência seca dos galhos e ramos, a seiva jamais deixou de correr pelas entranhas das raízes. O silêncio do parreiral começa a ser quebrado pela discreta aparição de lágrimas. Sim, aí se manifesta uma estranha e singular melancolia - o “choro da videira”.
A seiva volta a circular com força. Sobe para as cicatrizes dos galhos podados. Isso me lembra Cecília Meireles, quando diz – “ aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”. Possamos aplicar em nossas vidas essa sabedoria da natureza, recomeçar sempre a partir de primeiras ou últimas vezes de tudo o que nos acontece. Respeitemos novos ciclos e renovações em nós, mesmo que doam.
Constantemente convivemos com esse desabrochar na natureza. Depois de um ciclo vem outro e mais outro, e outro ainda antes de novos reinícios. Há de ser esta uma bela vindima. A primavera sinaliza felicidades por esses brotos que hão de transformar-se, como pequenos milagres, em ramos, folhas, cachos de uvas - as emoções das cepas em cores e perfumes tenros.
Acordo cedo todos os dias. Abro as portas do meu quarto no andar superior do antigo casarão – meu lar. Da varanda, sinto uma brisa a roçar a minha face. Percebo a neblina dissipar-se pouco a pouco. Está amanhecendo. Os primeiros raios de sol surgem nas montanhas e meus olhos acariciam os vinhedos que ondulam nas encostas e nos patamares ao redor. O clima se apresenta favorável ao cultivo das uvas. Noites frias e tardes ensolaradas.
Ah, pois, mergulhei fundo na paixão pelo cultivo de vinhos. Esse universo encantador. O mundo do vinho. Do plantio ao engarrafamento. Alquimia que demanda cuidado em cada etapa. Por uma escolha e pela realização de um sonho, aqui é meu eldorado. Neste chateau, pequenos milagres acontecem no dia a dia.
O enólogo, a sommelier e eu administramos tudo. Desde a produção dos vinhos. Até a comercialização. Ah, produzimos o legítimo Bordeaux biodinâmico, simbolizado por duas uvas - cabernet sauvignon e malbec, ou melhor dizendo, realizamos o assemblage – mistura de duas variedades de uvas na produção, pois nosso desejo é conseguir um resultado diferente e único.
Evitamos pesticidas. Observamos o calendário lunar para o cultivo das uvas. Elas ganham mais força em noites de lua cheia. Poesia cósmica, penso eu.
Pela avaliação dos experts, o vinho da última safra foi definido assim – “ ... é bem elegante, com finas notas de cedro, baunilha e frutas maduras com taninos no ponto certo, evolui amavelmente na boca e é muito persistente”. Resultado celestial.
Ah, mas eu afirmo, para degustarmos um bom vinho, não precisamos saber definir nesses termos, basta que nos entreguemos à emoção advinda da degustação pelo bouquet, pelo gosto, pela visão, pelo tato na taça, pelo som ao ser despejado... pelo prazer de estar com alguém especial... pela confraternização ou pela harmonização com uma refeição. Para quando estivermos felizes. Ou não. Ou a sós (principalmente) um bom vinho sempre é uma ótima companhia, satisfaz nossos sentidos.
Além do cultivo das videiras e da produção de vinhos, neste sítio, recebemos visitas e oferecemos opções de lazer, tours de bicicleta, trilhas ecológicas, passeios a cavalo, degustações de vinhos, queijos e chocolates, visitas aos salões da casa, decorados com móveis do século XIX, históricos, e com pinturas de mestres italianos e franceses nas paredes.
Uma aconchegante biblioteca, com lareira, abriga livros raros. Na grande cozinha, além das aulas de culinária, são preparados jantares harmonizados. Piqueniques nos jardins com estátuas e arbustos ou, junto aos parreirais. A adega no subsolo do casarão, ou cave, palavra francesa que significa caverna, ambiente absolutamente místico e encantador é climatizada com temperatura entre 14 e 17 graus, iluminação e umidade necessárias para a conservação dos vinhos nas garrafas e nas pipas.
O enólogo que trabalha comigo costuma afirmar: “ o vinho é um ser vivo – respira, tem alma e coração”. Ele também chora. O vinho chora.
Vem. Sente aqui neste terraço, observe a paisagem com as vinhas, antes que anoiteça, segure esta taça enquanto eu sirvo o vinho... observe estes lindos e misteriosos filetes que escorrem pelo interior da taça... são as lágrimas do vinho que “chora” pela concentração de álcool...
Aspire o bouquet – sinta os aromas em contínua mutação, pois as reações químicas jamais cessam, e esse conjunto de aromas vai sofrendo modificações com o tempo... assim como uma mulher... que desabrocha no decorrer do tempo... Não é lindo? Poesia cósmica e celestial.
Ah, pois, deve ter-se perguntado: onde se situa esse lugar de magia? Respondo: essa é a minha Morada de Sonho. Ela marca presença em mim.
Me perdoe, querido leitor, não se decepcione. Sonhe comigo e situe essa magia onde lhe aprouver. Na região da Borgonha, na França. Ou, quem sabe na Toscana, Itália. Ou em Mendoza, na Argentina. No Chile, na África do Sul... ou em qualquer lugar do mundo!! Na Serra Gaúcha. Ou...
E, para selarmos esse nosso entendimento, proponho um brinde ao vinho. E que sempre tenhamos pelo quê e com quem brindar pela vida, seja onde for.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com
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