Nas muitas vezes em que fui convidado a falar sobre a construção de meu romance O Quatrilho, em eventos escolares, uma pergunta era fatal: o que tinha acontecido com o casal que foi embora. Minha resposta era sempre a mesma: isso ficava para outro romance. De fato, no romance A Babilônia, o personagem Lourenço visita a casa de Teresa e Mássimo na Barra Funda, em São Paulo.
Já em Hollywood, a situação foi inversa. Na reunião de entrega do certificado de inscrição para o Oscar, um membro da Academia de Cinema fez este comentário elogioso: o roteiro do filme era original e interessante, ao centrar a ação no casal que ficou, depois da perda, e não no que saiu para outros rumos, o que seria a escolha habitual dos roteiros de cinema.
Mas vou revelar uma pequena curiosidade: tenho em meus arquivos um capítulo escrito para a Terceira Contagem de O Quatrilho, pondo em cena a chegada de Teresa e Mássimo na capital paulista, cena que aqui torno pública, mesmo não tendo a devida sequência.
“Sentada no vagão de segunda classe, com Rosa dormindo sobre os seus joelhos e Mássimo cochilando a seu lado, Teresa viu que a paisagem havia mudado. Não via mais matas e campos, mas casas e edifícios que pareciam correr diante de seus olhos. Essa viagem, de Porto Alegre a São Paulo, tinha chegado ao fim. Uma viagem que parecia não acabar mais. Tinham embarcado sábado à tarde e já era quarta-feira de manhã. O tempo todo aquela batida, sempre igual, tranque, tranque, tranque. Verdade que a cada quatro ou cinco horas o trem fazia uma parada, para se comer alguma coisa. Mas isso atrasava ainda mais a viagem.
Agora o trem seguia mais devagar, rente às casas, e Teresa ia lembrando os dias de sua fuga com Mássimo, saindo de San Giuseppe. Ela se sentia agora livre como um passarinho. Um passarinho que conseguiu fugir da gaiola depois de muito olhar o jardim e cantar atrás das grades. E não eram poucas as grades. Nem fáceis de serem quebradas. E se cantava não era de alegria, e sim para espantar a tristeza.
Mas agora a vontade de cantar era outra, de pura alegria. Quando se deu conta, cantarolava La bela Violeta:
La bela Violeta la và, la và,
la và sui campi, la se risognava
che ghera ‘l so Gingin che la remirava:
- Cosa remiri tu, Gingin d’amor? (*)
Mássimo abriu os olhos, voltou-se para ela com o sorriso mais lindo do mundo, e continuou cantarolando a canção, que nunca faltava nos filós de San Giuseppe:
Io ti remiro perché tu sei bela!
Tu voi venir com me a la guerra? (**)
- Sim, vou contigo para a guerra – riu Teresa.
Desceram do trem e Teresa respirou fundo. Segurando a pequena Rosa pela mão, correu os olhos pela estação que parecia um formigueiro. Gente correndo, gente gritando, gente carregando malas. Não podia negar que sentia um pouco de medo. O que viria pela frente? Sentados num banco da estação, Mássimo lhe devolveu a coragem:
- Já sei para onde vamos e o que vamos fazer. Daqui vamos para a paróquia da Barra Funda. O vigário lá é amigo de meu tio, o Padre Giobbe, que me disse para eu falar com ele. O nome do vigário é Padre Ernesto Vicentin.
- Ah – suspirou Teresa, - uma conversa com ele vai ajudar muito, com certeza
- Sim – concordou Mássimo. – ele pode nos ajudar a encontrar um bom lugar para morar, onde conseguir trabalho, onde buscar parceiros. São Paulo está crescendo muito. Está criando novos bairros, e muitas casas estão sendo construídas neles. E todas essas casas vão precisar de móveis novos, não vão?
- E aquele que fez a minha cômoda – riu Teresa, - está pronto para fornecer móveis para todos!
- É – riu ele, também. – A fortuna abriu o caminho para nós dois!”
NOTAS:
*) A bela Violeta vai, e vai / vai pelos campos, e tem a impressão / de que seu querido Gingin a está olhando. – O que estás olhando, Gingin de amor?
**) Eu te olho porque tu és bela! / Tu queres vir comigo para a guerra?
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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