Depois de um tempo afastado, dedicado aos trabalhos aqui e também em função de um desânimo com relação à forma com que as discussões e a sociedade estavam se relacionando, volto hoje para respirar, suspirar, renovando as esperanças na humanidade, que dias melhores virão e a democracia sobreviveu a mais esta prova na semana que passou.
Outro motivo que me leva a escrever novamente é a desilusão com que tenho visto muitas afirmações e suposições que surgem, principalmente nas redes sociais brasileiras. Assim, resolvi tentar, de uma forma simples, apresentar o que eu vi e estou presenciando aqui, na considerada maior democracia do mundo, mas que tem um sistema relativamente complexo para nossa mentalidade latina... Talvez sem muita maturidade.
Quando falamos da eleição nos Estados Unidos, que está se encaminhando para o fim, o que nos chama a atenção são somente as escolhas para presidente e vice e, talvez, o Senado e o Congresso deles, mas o que temos de ter em mente é que não eram somente estes três cargos que estavam sendo definidos. Dependendo da região, podem ser muito mais.
Aqui, no estado de Michigan, no condado de Wayne, estavam em jogo 49 cargos e 3 plebiscitos. Sim, isso mesmo, quase 50 pessoas estavam sendo selecionadas pelo povo para trabalhar pelo povo em nível federal, estadual e do distrito. Descobri isso pelo fato de ser muito curioso e, quando descobri que a vizinha iria votar por correio, ou seja, receberia toda a documentação (que está disponível na internet em pdf também) em casa, perguntei se eu poderia ver este material antes de ela enviar, em branco, obviamente, e ela concordou. Foi quase um erro dela, pois todos os dias eu perguntava se já havia chegado.
Até que, um dia, ela me mostrou os papéis na minha casa, fechados, exatamente como ela recebeu. Abriu na minha frente e comecei a analisar. Fiquei impressionado com a quantidade de papéis e envelopes usados para garantir a segurança, a necessidade de assinatura no envelope que é encaminhado, não na cédula de votação, para não associar o voto à pessoa.
E o mais impressionante foi o tamanho da cédula eleitoral. Sim, era uma folha de aproximadamente 50cm x 30cm, toda utilizada, frente e verso. Foi aí que comecei a entender o porquê de ser considerada a maior democracia!
Os cargos em questão eram divididos em cargos ligados a questões político-partidárias, cargos não ligados às questões políticas e os plebiscitos. Os cargos partidários eram divididos em nível federal, estadual e distrital, sendo que a primeira seção partidária continha escolhas para: Partido político (1), Presidente e Vice-presidente (1), Senador (1), Representante no congresso do 14º distrito (1), Representante no congresso do 2º distrito (1).
Já a segunda seção da cédula era dedicada aos Conselhos do estado de Michigan, que eram: Membro do conselho estadual de educação (2), Regente da Universidade Estadual de Michigan (2), Conselheiro da Universidade Estadual de Michigan (2), Governador da Universidade Estadual de Michigan (2) e, em seguida, na seção distrital/regional, eram escolhidos: promotor (1), xerife (1), escrivão (1), tesoureiro/secretário de finanças (1), responsável pelas escrituras (1), comissário do primeiro distrito (1).
Quanto aos cargos não partidários, eram ligados ao sistema judiciário e educacional, sendo no judiciário possível escolher: Juiz da Suprema Corte (2), Juiz da Corte de Apelação (3), Juiz da Corte de Processos 1 (15), Juiz da Terceira Corte (2), outro Juiz da Corte Parcial (1), Juiz da Corte de Provas (3). No distrito escolar local era possível escolher os membros do Conselho Escolar Municipal (4) e suplentes (1), totalizando, assim, 49 cargos públicos escolhidos pelo povo.
Em seguida, é apresentada a seção dos plebiscitos, com discussões e questionamentos relacionados à realidade local dos moradores. Bem específica de cada estado ou até dos distritos, nesta eleição estavam em questionamento três plebiscitos: o primeiro, pela manutenção de um imposto sobre a mineração de óleo e gás nas terras do estado, a ser investido em manutenção de parques, áreas naturais, recreação pública, estrutura de recreação, explicando, de forma transparente, como este dinheiro nos estados deve ser gasto.
Outro questionamento quanto à necessidade ou não de um mandato de busca para poder acessar informações contidas em equipamentos de comunicação eletrônicos e, por fim, um plebiscito permitindo a arrecadação de dois dólares a cada mil arrecadados para distribuição exclusivamente na área de educação.
Assim, fica o questionamento: é possível apurar todas estas escolhas rapidamente? 51 escolhas? Tendo ainda como detalhe muito importante que, dependendo do estado, os votos puderam ser enviados com mais de um mês de antecedência, mas não podiam ser lidos com antecedência. Assim, ficaram armazenados em locais específicos, aguardando o final do dia da eleição, quando poderiam passar a ser contados.
E os votos no dia da eleição, estes eram lidos na hora e já contabilizados. Por isso essa mudança e reviravoltas nestas eleições, principalmente porque o presidente atual, desde o início da campanha, tentou desacreditar o sistema de votação antecipado por correio, pois sabia que isso poderia fazer muito mais gente votar (detalhe importante: eleições aqui são facultativas, ninguém é obrigado a votar, tanto que as campanhas públicas são para fazer as pessoas votarem, independentemente em quem).
Tendo isso em mente, o presidente estava preocupado com o volume de votos que poderiam ser contabilizados pelo seu opositor muito em função da crise da Covid-19, que poderia fazer muitas pessoas optarem por votar sem sair de casa, e foi o que aconteceu. Assim, uma semana antes das eleições, o número de votos totais enviados pelos correios era recorde, ou seja, o presidente, que estava incentivando somente votação no dia da eleição, viu um volume gigante de votos antecipados, que, pela lógica, não eram para ele. Assim, aumentou sua campanha de desmoralização dos votos antecipados.
Os votos antecipados acontecem desde a Guerra Civil norte-americana, em 1864, para que os soldados em guerra pudessem votar. No início, era necessário uma justificativa para utilizar esse meio de votar, mas, em 1978, na Califórnia, passou-se a não exigir esta justificativa. Antes da pandemia, cinco estados já permitiam, sem restrições, o voto por correio, 29 não exigiram justificativas para votar por correio nesta eleição e 16 permitiram apresentando uma justificativa. Em 2016, um em cada quatro votos foi enviado pelo correio, e o percentual de 0,00006% dos 250 milhões de votos já feitos historicamente pelo correio tiveram algum problema.
Desta forma, é muito difícil imaginar que, no país em que “se te pegarem com uma lata de cerveja aberta dentro do carro, podes ir para a cadeia”, como diz meu amigo Gustavo Miotti, que vive aqui há mais tempo, que exista a possibilidade de ter havido algum tipo de fraude. As pessoas “não se arriscariam a tanto”, palavras da minha vizinha, no momento em que eu analisava os documentos enviados e fiquei imaginando este sistema no nosso país e fazendo algumas suposições com relação às possíveis fragilidades do processo.
Enfim, renovadas as esperanças, confirmando que a maior democracia do mundo se mantém viva e ativa em seu modelo, com muita liberdade, mas muita responsabilidade também e, claro, uma cultura e educação exemplar, que permitiram que 150 milhões de eleitores escolhessem, além de seu presidente, milhares de cargos espalhados por todos os estados da federação.
Thank you, America!!!, o mundo precisava disso, depois de sermos sufocados, seja por um policial com seu joelho no pescoço de um ser humano, seja por um vírus que tirou a vida de centenas de milhares de pessoas pelo país e pelo mundo, ou seja pela tentativa de sufocamento durante uma eleição por uma liderança tóxica para a democracia...
Sim, ela sobreviveu, graças ao sistema mais democrático do mundo e graças às pessoas, que nunca deixaram de acreditar que a democracia é e será SEMPRE a melhor escolha!!!! Thank you, America!!, o mundo precisava deste alívio, dessa esperança de se pensar em dias melhores!!!!
Rafael de Lucena Perini já atuou como empreendedor no setor de chocolates em Caxias do Sul por 10 anos. Bolsista no Doutorado em Administração de Empresas na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e professor licenciado do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), atualmente é pesquisador visitante da Wayne State University, em Detroit. Dedica sua pesquisa a temas relacionados ao desenvolvimento nas cidades.
perini.usa@gmail.com
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