Caxias do Sul 22/11/2024

Suspense exemplar no instigante FUJA

Com reviravoltas, segredos e amor doentio, o filme trata de tema complexo em enredo bem costurado
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 10/04/2021 às 08:00:34
Foto: LUIZ CARLOS ERBES

Por Eulália Isabel Coelho

Um bom suspense é aquele que nos tensiona em expectativas. É gênero envolvente no qual o espectador se mantém em alerta à espera do desenvolvimento da ação. Do passo seguinte, do que se esconde por trás das intenções dos personagens, daquilo que não é mostrado, mas está lá.

A incerteza move o filme, deixando a trama “em suspenso” antes de ser revelada. Não é a temática e sim a estrutura narrativa que cria a tensão. Há ótimos exemplos, principalmente no escopo hitchcockiano. O Mestre do Suspense dizia que esperar o bolo crescer no forno é um exemplo de suspense. “Será que vai dar certo?”, nos perguntamos, com vontade de espiar.

Assim como o bolo no forno causa ansiedade, o filme de suspense a eleva a extremos. Em Fuja (EUA/Canadá, 2020), dirigido por Aneesh Chaganty, a receita é certeira. Não à toa está entre os mais assistidos da Netflix desde que entrou no catálogo no final de março. Com um enredo bem costurado, a obra tangencia temores em sua proposição de jogar com as sensações do espectador.

Torcemos por Chloe, interpretada por Kiera Allen, a adolescente cadeirante (a atriz o é na vida real) cuja mãe superprotetora, Diane, a sempre espetacular Sarah Paulson, mantém sob cuidados restritos. A atriz, reconhecida por seus papéis intensos em American Horror Story (2011) e Rachet (2020), está perfeita.

Mãe e filha vivem relação de codependência

Quando na abertura do filme aparecem verbetes sobre várias doenças, arritmia, hemocromatose, asma, diabetes e paralisia, nos perguntamos se é um alerta. Um aviso? Não, é a própria essência do enredo, logo percebida quando Chloe aparece em cena. A mãe, cuidadora extremada, lhe dá medicamentos para os inúmeros males. Todos aqueles listados antes dos créditos iniciais.

O roteiro de Aneesh Chaganty e Sev Ohanian é repleto de reviravoltas e é a partir da primeira delas, a desconfiança de Chloe sobre uma nova medicação, que irá se desenvolver a linha do suspense. Será que essa mãe tão dedicada é o que parece ser? Logo nos damos conta de que há algo errado e que a filha é, na verdade, refém de sua mãe.

Daí em diante algumas coisas se aclaram e outras se turvam, pois essa é a intenção, mexer com os ânimos do espectador, de tal modo que sua inquietação é força motriz para o filme. A obsessão de Diane pela filha é envolta em segredos que descobrimos junto com a protagonista, o que causa ainda mais aflição.

Chloe desconfia da nova medicação dada pela mãe

Diane, perpetua em si o amor invasivo e doentio

No decorrer da trama percebemos que a mãe sofre de alguma perturbação que a faz nutrir perversas atitudes a fim de manter a filha sob seu jugo. Embora em nenhum momento seja citada, a Síndrome de Münchausen por Procuração explica a sobrecarga amorosa e doentia de Diane. Não, ela não é sociopata, como se poderia pensar inicialmente.

A síndrome citada acontece quando a mãe adoece o próprio filho para cuidar dele, privando-o de sua saúde e autonomia. É uma relação abusiva com consequências terríveis e sequelas muitas vezes irreversíveis. No filme, o estado de Chloe é provocado pelas drogas administradas por Diane. Assim, a verdadeira doente, não é a filha, mas a mãe.

Esse quadro mental é também chamado de “transtorno factício imposto a outros” e foi identificado pela primeira vez em 1977 pelo pediatra inglês Roy Meadow. O distúrbio é uma variação da Síndrome de Münchausen que leva o portador a fingir doenças no intuito de receber atenção e cuidados. Essa patologia foi descoberta na década de 1950 pelo médico inglês Richard Asher.

A Síndrome de Münchausen por Procuração de que sofre Diane já foi apresentada em outros filmes e séries, como em The Act, antologia da plataforma Hulu sobre crimes da vida real. Na primeira temporada, é contada a história de Gypsy Rose, vítima da síndrome de sua mãe. O drama, com final trágico, foi tema do documentário Mamãe Morta e Querida (HBO,2017).

Devoção sem limites tem distúrbio como fonte

Em Fuja, a síndrome por procuração envolve um trauma materno, desencadeador dos atos abusivos que garantem a tutela total da filha. O que Diane não supõe é que Chloe, ao descobrir a verdade, tentará livrar-se de seu domínio a qualquer custo. É quando as duas atrizes crescem em cena ao medir forças com ardis inteligentes.

O filme entrega agilidade, mas também uma espécie de sufocamento. Há momentos em que ficamos paralisados como Chloe na sua cadeira de rodas vivendo em atmosfera claustrofóbica. A obra tem uma narrativa vigorosa e envolvente. Fuja é sobre desespero e sobrevivência, mas também sobre coragem.

Assista ao trailer legendado AQUI

Eulália Isabel Coelho é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica, especialista em cinema e escritora

mail bibacoelho10@gmail.com

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