Caxias do Sul 22/11/2024

Som de gaveta: você lembra disso?

Arrombamentos de veículos no passado forjaram medidas que hoje parecem esdrúxulas
Produzido por Luiz Carlos Secco, 21/02/2023 às 10:19:17
Foto: ARQUIVO PESSOAL

O setor automobilístico brasileiro e mundial criou muitas situações que, se na época pareciam plausíveis, quando analisadas friamente, são absurdas e demonstram como a sociedade aceita ou se adapta a uma realidade inaceitável.

Quem conviveu com o som de gaveta? Lembram? Creio que somente os mais “experientes” vão lembrar. Mas durante os anos de 1980 e 1990, em razão dos contínuos arrombamentos de veículos estacionados nas ruas para furto dos rádios e toca-fitas, muitos motoristas compravam carros sem rádio e instalavam um som não original de gaveta, para poder retirar e levar consigo ao sair do carro e deixá-lo estacionado na rua.

Para quem não viveu isso, imagine retirar o rádio do carro e entrar no restaurante, cinema, shopping ou mesmo na casa de um amigo, carregando o rádio toca-fitas na mão em um equipamento que era chamado de gaveta. Hoje isso é um absurdo. Mas existem muitos outros exemplos ainda mais incríveis no exterior.

Conjuntos com rádio e toca-fitas eram alvos de furtos...

...protegidos pelos proprietários em "gavetas" portáteis (Fotos: arquivos internet)

Um desses exemplos surgiu após o recente podcast que fiz sobre a importância dos limpadores de para-brisa.

Após ouvir o podcast dos limpadores, um amigo meu, João Tome, ex-diretor da Ford na Inglaterra e na Bélgica, presidente da Ford Portugal, responsável, em Detroit, pela comunicação com a imprensa dos países da área oriental e, também, da América Latina, empenhou-se na pesquisa sobre o surgimento e utilização desse equipamento e descobriu que, na antiga União Soviética (hoje Rússia), os limpadores de para-brisa eram objetos preciosos.

Por serem produzidos com lâminas de borrachas de má qualidade, tinham baixa durabilidade, gastavam-se rapidamente, exigiam frequente substituição e, como havia dificuldade de encontrá-las no mercado de reposição, as lâminas de borracha eram frequentemente furtadas.

Para evitar o furto das palhetas, os donos de carros, ao estacioná-los na rua, costumavam desmontá-las e levá-las consigo. Algo parecido com o caso brasileiro do som de gaveta...

Também era comum os motoristas, por segurança, só instalarem as palhetas em seus carros em dias de chuva. Por esse costume, os carros circulavam sem limpadores de para-brisa quando não estava chovendo.

O problema é que era grande o número de proprietários que esqueciam de instalar as palhetas, tornando natural a quantidade de veículos circulando sem esse componente, mesmo em dias chuvosos.

As informações sobre o hábito dos soviéticos me permitem lembrar também de um velho adágio popular usado no Brasil nos velhos tempos: lá e cá más fadas há.

João Tome também pesquisou sobre as atividades da norte-americana Mary Anderson, que inventou o limpador de para-brisa em 1902, descobrindo que, como havíamos comentado, a dedicada senhora não conseguiu o interesse de nenhuma empresa em adquirir os direitos de sua invenção para utilizá-los nos veículos.

Ao consultar um advogado, também não teve êxito em conseguir apoio para vender a ideia dos limpadores de para-brisa com a justificativa de que tornavam os veículos inseguros pela possível distração dos motoristas com os movimentos de vai-e-volta em dias de chuva, comprometendo o devido cuidado na condução dos veículos.

O advogado não aceitou defender a senhora Mary, por considerar perigoso e sem argumento plausível para tentar vencer a causa. Explicou que não tinha como convencer os juízes de que os movimentos dos limpadores não provocariam a distração dos motoristas na condução dos veículos e representavam perigo, principalmente, aos passageiros.

O advogado ponderou, também, que não haveria interesse suficiente dos clientes em limpadores de para-brisa para justificar a sua inclusão entre os equipamentos normais de série dos veículos. Ou seja, no início do século passado, não existiam limpadores de para-brisa e também ninguém estava preocupado com segurança veicular.

Independentemente do desejo de Mary Anderson, no início do século passado, as empresas fabricantes de automóveis não sabiam dos benefícios que os limpadores de para-brisa poderiam proporcionar, quando passaram a ser adotados. Também não existiam autoridades de trânsito e, quando os carros surgiram, eram desejados para ser símbolos de poder econômico ou instrumento para uma nova forma de curtição ou exibição, até serem reconhecidos como eficiente forma de transporte.

Como a história demonstra, a evolução da sociedade e da indústria automobilística tem passagens inacreditáveis que, se ocorressem de outra forma, poderiam ter poupado muitas vidas, muitas situações perigosas e absurdas e muitos dissabores.

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Luiz Carlos Secco trabalhou, de 1961 até 1974, nos jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde, além da revista AutoEsporte. Posteriormente, transferiu-se para a Ford, onde foi responsável pela comunicação da empresa. Com a criação da Autolatina, passou a gerir o novo departamento de Comunicação da Ford e da Volkswagen. Em 1993, assumiu a direção da Secco Consultoria de Comunicação.

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