POR JOSÉ CLEMENTE POZENATO
Há uma disciplina, no campo dos estudos de literatura, chamada “ecdótica”. É quase uma ciência detetivesca. Seu objetivo é garantir que determinado texto, posto ao alcance do público, não possui nenhuma falha de autenticidade.
Isso não se limita a confrontar a cópia com o original, mas também em identificar quem é o autor: ele está com o nome real? está escondido sob um pseudônimo? usa algum heterônimo, como Fernando Pessoa? trata-se de uma obra individual ou de elaboração coletiva?... Enfim, a ecdótica, quando estuda autores do passado, em busca de resposta a tantas perguntas, sempre reserva alguma surpresa, que pode contradizer o que é normalmente divulgado.
No caso de William Shakespeare, por exemplo, não há registro de nascimento, nem de batismo - como era padrão na época -, com esse nome, em Standford-on-Avon.
Um verbete escrito em 1600 (Shakespeare morreu em 1616) diz que ele estudou na King Edward’s Grammar School, em Stratford-on-Avon. Os registros da escola foram preservados, obedecendo a rigidez britânica. O estranho é que não existe neles nenhum aluno com o nome de William Shakespeare. E se ele fez uma carreira brilhante como escritor é de supor que tenha frequentado o colégio...
Outro enigma: um certo John Florio viveu em Londres entre 1553 e 1625: era um humanista de pai italiano, autor de um dicionário inglês-italiano. Escreveu dois diálogos: First Fruits (1578) e Second Fruits (1591); há claros sinais dessas obras em textos de Shakespeare. Foi levantada a hipótese de que fossem pai e filho, mas as idades não combinam para isso. Michelangelo Florio, que seria o verdadeiro William Shakespeare, é de 1564 e John Florio de 1553, com apenas 11 anos de diferença entre os dois. Mas não seriam da mesma família?
Outra interrogação: nos dramas de Shakespeare, por cinco vezes aparecem situações de naufrágio, com uso de termos náuticos que poderiam levar a pensar que o autor fosse marinheiro, ou que tenha vivido em ambiente náutico. E não há provas, nem mesmo registros, de que Shakespeare tenha viajado de navio ou servido na marinha. Já Michelangelo Florio viveu na Sicília e em Veneza, sempre em cidades à beira-mar, além de ter viajado bastante.
Outro elemento estranho para a ecdótica é a riqueza vocabular de Shakespeare. Estudos apontam que John Milton, poeta inglês da mesma época, usou 8 mil vocábulos em suas obras, enquanto Shakespeare usou 21 mil. Hoje, um inglês instruído não usa mais de 4 mil. Esse volume vocabular em Shakespeare mostra um nível de erudição que pode ser explicado pelo seu amplo conhecimento da literatura em língua italiana. Desde Dante, Petrarca e Boccaccio, era a Itália a principal referência literária para toda Europa.
E quem conservou os manuscritos de Shakespeare? Essa é outra pergunta chave para a ecdótica. Um religioso do século XVIII relata que percorreu todas as bibliotecas num raio de 80 quilômetros de Stratford, sem encontrar nenhum manuscrito de Shakespeare.
Até hoje, não foi encontrado nenhum manuscrito original dele. Dante, Petrarca e Boccaccio, para citar autores famosos que viveram pelo menos um século antes, todos tiveram seus manuscritos preservados. Apenas sete anos depois da morte de Shakespeare, em 1623, foram publicadas 36 peças de sua autoria no First Folio, isto é, o Primeiro In-fólio, que é uma publicação impressa em folhas dobradas. Uma hipótese aceita é de que os manuscritos estavam nas mãos da família Florio, que não podia justificar a procedência.
Flagrante de uma aparição do fantasma de Shakespeare em Stratford-on-Avon (Foto por Marcos Fernando Kirst)
Outra bomba enterrada. A fama de Shakespeare só começou a ganhar destaque no século XIX. Por coincidência, no mesmo período em que se deu a revolução industrial na Inglaterra e em que ela partiu firme para o comércio internacional. Nesse quadro é que foi criada na Inglaterra, em 1841, a Sociedade Shakespeare, para difundir no mundo a sua obra. Já em 1865, foi fundada, na Alemanha, a Deutsche Shakespeare Gesellschaft. Sociedades shakespearianas foram surgindo pela Europa e pelo mundo. Até nas missões anglicanas, na África, eram lidas obras de Shakespeare para os nativos!
Qual a causa de tanto entusiasmo pela sua obra nesse período da história econômica? Teria a obra de Shakespeare algum sintoma do capitalismo, que Marx, não por acaso, foi entender na Inglaterra como funciona? Vou dar apenas uma dica. Num poema de Shakespeare, intitulado Vênus e Adônis, em que a deusa faz de tudo para seduzir o mortal, ela chega a propor a ele este negócio (na minha tradução livre):
“Meu coração, por mil beijos,
eu vendo: paga-o a prazo
se queres. Que são pra ti
as dez centenas de beijos?
Se atrasas, pagas em dobro:
vinte vezes os cem beijos”.
É verdade que essa passagem do poema permite duas leituras antagônicas. O poeta está encantado com a linguagem dos comerciantes, fazendo preço pela metade, dando prazo em dez prestações e dobrando o preço se houver atraso do pagamento? Ou, pelo contrário, está ironizando ao transportar essa linguagem para os negócios de amor? A poesia tem essa virtude, como as falas dos oráculos: cada um vê o sentido que deseja ver!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
e-mail: pozenato@terra.com.br
Do mesmo autor, leia também: UM MISTÉRIO DA LITERATURA: SHAKESPEARE ERA ITALIANO?