Caxias do Sul 19/04/2025

Ser gaúcho longe do Rio Grande

Ao deparar com patrícios de tantas e diversas partes do Brasil, sinto que nós, gaúchos aqui nos EUA, somos mais raros do que mineiros ou paranaenses
Produzido por Felipe Atti dos Santos, 20/09/2020 às 13:20:33
Foto: Arquivo pessoal

A New England, na região nordeste dos Estados Unidos da América, foi o destino de imigrantes fugindo da pobreza de diversos países europeus no início do século XIX. Estima-se que 12 milhões de imigrantes tenham passado pela Ilha Ellis, ilha vizinha àquela em que encontra-se a Estátua da Liberdade, na Foz do Rio Hudson entre Nova York e Nova Jersey, onde naquela época havia o centro de triagem, hospitalização, tratamento, seleção (e/ou deportação) e cadastramento de imigrantes, e atualmente é o Museu Nacional da Imigração.

Um grupo numeroso de imigrantes naquela ocasião foram os portugueses, que, ao passarem pela Ilha Ellis, tiveram seus sobrenomes mudados, por exemplo, de Rodrigues para Rogers, de Oliveira para Oliver, de Martins para Martin, de Pereira para Perry, de Moraes ou Morais para Morris, de Magalhães para McLean, de Souto para Sutton, de Moura para Moore, de Silva para Silver (ou Sylvia), de Rocha para Rock (ou Stone), de Fernandes para Frederick, de Costa para Charlie e de Santos para Stan.

A facilidade da comunicação proporcionada pela abundância de habitantes lusófonos foi o atrativo para que, algumas décadas depois, começassem a desembarcar imigrantes brasileiros por estas terras, em número tão grande que hoje é inegável que os sotaques predominantes na língua portuguesa aqui falada são tipicamente brasileiros e, além do sotaque, também o refrigerante de guaraná é encontrado nas deliciosas padarias portuguesas.

Ao deparar com patrícios de tantas e diversas partes do Brasil, sinto que nós, gaúchos aqui nos EUA, somos mais raros que mineiros ou paranaenses. Ainda que seja fácil encontrar erva-mate nos mercados brasileiros daqui, chego à conclusão de que tal produto encontra-se disponível apenas porque é ingrediente do tererê.

E foi num desses mercados brasileiros que tive a oportunidade de debater a respeito de uma hipótese que justificaria o fato de ainda não ter conhecido nenhum gaúcho aqui nos Estados Unidos: tão numerosa foi a debandada de gaúchos para o Centro-Oeste brasileiro que, dessa forma, tornou-se escassa a matéria humana dos pampas brasileiros que poderia ter vindo para cá.

E foi o açougueiro goiano, a quem eu tive de pedir por fraldinha para obter um pedaço de vazio, que reforçou a possibilidade da hipótese ser verdadeira (o fato de ser muito procurado por mexicanos, que o chamam de arachera, torna o vazio mais caro que a picanha aqui). Sim, houve o tempo em que muitos gaúchos venderam suas pequenas e valorizadas propriedades no Rio Grande do Sul e, com o dinheiro, puderam adquirir muitos hectares, inclusive em Goiás, onde chegaram com suas esposas trabalhadoras e nunca tiveram medo de contrair dívidas em bancos, a fim de comprar tratores, semeadeiras e colheitadeiras, ao ponto de se tornarem grandes produtores agrícolas.

Desde então, comecei a pensar nos meus amigos gaúchos que saíram do Rio Grande antes de mim, não pela falta de oportunidades que poderia haver em nosso estado, mas para irem ao encontro de oportunidades ainda melhores.

Gaúchos do Vale do Taquari que, por saberem falar alemão, tornaram-se comissários de bordo de voos internacionais da VARIG e acabaram mudando-se para o Rio de Janeiro muitas décadas atrás e, anos depois, viriam a levar um de meus melhores amigos para morar perto deles.

O cunhado formado na Universidade Federal de Santa Maria, que se tornou empreendedor em Criciúma.

O colega de SENAI que hoje é engenheiro e mora na Alemanha.

O aniversário de minha tia Sônia, no dia 19 de setembro, é o lembrete, na véspera, da chegada da comemoração do aniversário da Revolução Farroupilha.

Talvez as façanhas do povo gaúcho cantadas no Hino Rio-Grandense já não tenham mais relevância, visto que o maior problema do estado hoje é o próprio governo estadual, cuja proposta “administrativa” consiste apenas em aumentar impostos.

Talvez hoje sirvam de modelo para toda terra a inquietude de alguns gaúchos, que se sentem motivados pela oportunidade de mudança, têm a coragem de assumir riscos a fim de potencializar e concretizar sonhos e, assim, se destaquem em outros contextos, longe do Rio Grande.

E é lamentável que governadores, em vez de estancarem a sangria a fim de tornar o estado atrativo para investimentos, ou para que menos gaúchos desistam do Rio Grande, desrespeitosa e abusivamente tratam seu povo como refém: “Aumentar impostos, o povo tem raízes, não podem fugir, podem espernear, mas espernearão pagando”.

* Felipe Atti dos Santos é natural de Caxias do Sul, engenheiro mecânico formado na UCS. Reside na Região Metropolitana de Nova York desde maio de 2019, onde trabalha como engenheiro de aplicação na filial americana da empresa KraftPowercon.

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