Caxias do Sul 22/11/2024

Ronco do bugio: um patrimônio cultural

Ritmo nativo surgido em território gaúcho entra na batalha por reconhecimento como patrimônio cultural imaterial
Produzido por José Clemente Pozenato, 31/03/2022 às 09:02:31
Foto: Marcos Fernando Kirst

Em minhas “Memórias de São Chico”, conto que uma das minhas lembranças de infância era o som do ronco do bugio, no meio do mato que cobria os Morrinhos, como era chamado o lugar. Ronco que era interpretado como sinal de chuva.

Cresci ouvindo histórias do macaco bugio, mas nunca obtive a graça de ver um deles. Criança não podia entrar no mato, era um perigo, diziam meus pais. Meu pai, porém, me informou que era um macaco marrom-amarelado, de menos de um metro de tamanho e bastante pesado e lerdo para pular nas árvores.

Então, do bugio só me ficou o ronco na memória. Um ronco tão forte que a gente ouvia a quatro ou cinco quilômetros de distância.

Anos depois, aí pela década de 1980, começou a ser realizado, em São Francisco de Paula, o Festival Ronco do Bugio. Ronco que não tem nada a ver com o bugio, pelo menos não de forma direta. Acontece que algum gaiteiro inventou lá um ritmo ao qual deu esse nome, de “ronco do bugio”. Daí nasceu um concurso anual de gaiteiros para preservar esse gênero de música, que, era o que se dizia, tinha origem nos Campos de Cima da Serra.

Para surpresa minha, um amigo oriundo de São Francisco de Assis, uma cidade da região missioneira, contou que lá também era realizado um festival com o nome de “Querência do Bugio”. E que era lá, no interior do município, que tinha surgido esse estilo musical, fazendo roncar o fole da gaita, em compasso binário, para imitar o som do bugio.

Os dois festivais, o do “Ronco do Bugio” e o da “Querência do Bugio”, seguiram em frente, numa rivalidade histórica quanto à origem desse ritmo, tido como o único nativo do território gaúcho.

E agora surge uma excelente notícia: os municípios de São Francisco de Paula e de São Francisco de Assis resolveram dar uma trégua à rivalidade para encaminharem em conjunto, ao Ministério da Cultura, uma proposta de reconhecimento do ritmo do bugio como patrimônio cultural do estado e do país.

A ideia teria surgido quando o ritmo do forró, também de origem controversa, foi tombado como patrimônio cultural imaterial do Brasil, e tem o envolvimento do poder público dos dois municípios, com os dois prefeitos em busca de acordo.

Como já estive envolvido em projetos buscando esse objetivo, sei que não será uma tarefa fácil a sua aprovação. Mas, se não se ouve mais o bugio roncar, que pelo menos se ouça o seu ronco na gaita dos gaúchos.

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.

mail pozenato@terra.com.br

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