Já escrevi AQUI que um crítico português me comparou com Cesare Pavese, ao afirmar que meu romance O Quatrilho tinha muita afinidade com os do poeta e romancista italiano de Turim. Relendo agora sua poesia, chamou-me a atenção um tema que perpassa a visão que tem de seu tempo: o choque da cultura tradicional com os inventos da tecnologia.
Machado de Assis, também um observador atento das mudanças de costumes, chamou a atenção em duas crônicas para o que podia significar a inauguração dos bonds elétricos, substituindo a tração feita por burros. Uma delas data de 15 de março de 1877, e tem esta brincadeira:
“Mas inauguraram-se os bonds. Agora é que Santa Teresa vai ficar à moda. O que havia pior, enfadonho a mais não ser, eram as viagens de diligência, nome irônico de todos os veículos desse gênero. A diligência é um meio-termo entre a tartaruga e o boi”.
Já nessa crônica Machado levanta esta questão: e para onde irão os burros? Um burro olha o novo bonde “cheio de saudade e humilhação”. E, bom observador, prevê que, assim como o burro foi eliminado como energia de transporte, “o vapor será eliminado pelo balão, o balão pela eletricidade, a eletricidade por uma força nova, que levará de vez este grande trem do mundo até a estação terminal”. Já conhecemos essa “força nova”...
Numa outra crônica antológica, de 16 de outubro de 1892, Machado de Assis constrói um diálogo filosófico entre dois burros. Enquanto um deles lamenta ficarem sem trabalho e sem atenção, o outro se diz satisfeito porque ficarão livres e ninguém vai mais bater neles com chicote.
Cesare Pavese, que é da geração seguinte, também fica chocado com uma mudança: a entrada em cena do automóvel (la macchina, em italiano). E conta a história de um pescador de pérolas que deixa a profissão para instalar um posto de gasolina (no original, benzina), tirando todos os animais das estradas e obrigando as pessoas a comprar seus carros a motor. Chegou a publicar a Trilogia delle macchine, em 1930.
Em seu mais célebre livro de poesias, Lavorare stanca (Trabalhar cansa), há um poema nessa linha temática, com o título em inglês (nome de uma oficina de automóveis com posto de gasolina), também sinalizando que as pequenas culturas locais estavam iniciando um processo de globalização. Para degustar bem esse poema, fiz dele a tradução que vai a seguir.
Atlantic Oil
O mecânico tonto está feliz metido num fosso.
Da oficina, à noite, em cinco minutos pelo campo,
chega em casa: mas antes há o frescor da grama
para curtir, e o mecânico dorme, pois vem já a madrugada.
A dois passos, no campo, está erguido o cartaz
vermelho e preto: quem chega perto, não o consegue ler,
tal seu tamanho. Agora está ainda úmido
de orvalho. A estrada, de dia, o cobre de poeira,
como cobre os arbustos. O mecânico se atira no sono.
É completo o silêncio. Em breve, com o calor do sol,
passarão os automóveis sem descanso, levantando pó.
Dirigidos para o alto do morro, vão mais lentos um pouco,
depois se jogam pela curva abaixo. Um que outro para
na poeira, diante da garagem, que o entope de litros.
Os mecânicos, tontos um pouco, estarão de manhã
sobre as caixas, sentados, esperando um trabalho.
Dá gosto passar a manhã sentado na sombra.
Aqui o fedor dos óleos se mescla ao odor do verde,
do tabaco e do vinho, e o trabalho os vai buscar
na porta de casa. Volta e meia, dá vontade de rir:
camponesas passam com animais assustados
e culpam a garagem que tranca a passagem;
camponeses olham de esguelha. [...]
Também à noite passam os carros, mas silenciosos,
tanto que o tonto, no fosso, não é acordado.
À noite não erguem pó, e a luz dos faróis
mostra em cheio o cartaz sobre o prado, na curva.
De madrugada circulam carros e não se ouve rumor,
a não ser a brisa que passa e, vinda de cima,
se espalha no plano, afundando na sombra.
[1933]
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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