Caxias do Sul 22/11/2024

Rabelais, o defensor do riso

Médico e escritor medieval propagou que “rir é o melhor remédio” para os males humanos
Produzido por José Clemente Pozenato, 16/02/2021 às 14:39:57
Foto: DIVULGAÇÃO

O tempo atual convida a gente a remexer no fundo do baú. Com isso, outro escritor que me veio parar nas mãos foi François Rabelais, que antecedeu de alguns anos o autor dos Ensaios, Michel de Montaigne. Rabelais nasceu em 1494 e morreu em 1553, “velho e cansado” - como registrou um biógrafo seu contemporâneo -, antes de completar sessenta anos...

A biografia dele foi cheia de peripécias, indo de frade franciscano a monge beneditino e a médico. Mas o que interessa é que pelos quarenta anos resolveu fazer humor para desmascarar a esclerose de todas as instituições de seu tempo, montadas na Idade Média. Lançou então o romance Pantagruel – de onde nasce o adjetivo “pantagruélico”, que está em todos os dicionários. O personagem é um gigante comilão e desbocado, fazendo trocadilhos a torto e a direito com as palavras sérias de seu tempo.

O sucesso da obra foi imediato. E imediata também a sua condenação pela Igreja e pelo Estado, como era de se esperar naqueles tempos carrancudos. Com o sucesso junto aos leitores, Rabelais logo escreveu Gargantua, em que o personagem é o pai de Pantagruel. E prosseguiu escrevendo sem descanso dentro da mesma linha provocadora de escândalo. E de risadas!

Foi Rabelais, quem reabilitou o riso na cultura ocidental. Durante a Idade Média não se ria de nada, o riso era considerado sinal de estupidez: de estultícia, como se escrevia na época. Rabelais, na contramão da Igreja e dos barões feudais, afirmou que “rir é humano”, expressão que entrou para a fala de todos os dias. E como médico formado em Montpelier, defendeu que “rir é o melhor remédio” para os males humanos, sejam eles físicos ou do espírito.

Rabelais, o homem que levava a sério a importância do riso

Ele inventou inclusive um povo fictício, que chamou de Agélastes, que significa, em grego, “os incapazes de rir”.

Embora não seja da percepção comum, traços culturais da Idade Média ainda se prolongam dentro da modernidade e até da pós-modernidade. Não é de se estranhar, portanto, que ainda existam “agélastes”. Onde vigora algum tipo de fundamentalismo, seja ele religioso ou político, lá estão eles brandindo ameaças contra os que não levam tudo a sério. É só dar uma passada de olhos, e de ouvidos, no comportamento dos ditadores que ainda sobrevivem. Temos um pequeno estalinista aqui perto, bem ao lado da fronteira do Amazonas...

Alguns anos atrás, em 2006, houve uma confrontação entre Europa e mundo islamita por causa de uma charge humorística sobre a figura de Maomé, publicada pela revista francesa “Charlie Hebdo”. Pouco antes, Salmon Rushdie, por causa dos “Versos Satânicos” e das brincadeiras nele contidas, fora sentenciado à morte por líderes islamitas. O presidente do Irã chegou a excomungar todo o ocidente, porque nele as pessoas acreditaram nas previsões de um polvo sobre os resultados do futebol. Sério como ele era, decidido a ter um mundo perfeito, foi incapaz de perceber que tudo não passava de uma grande diversão.

Em 2008, dois anos depois do estrondoso caso “Charlie Hebdo”, tive a oportunidade de participar de uma mesa-redonda sobre o tema na Universidade de Toulon, na França. Depois de hábeis análises de outros componentes da mesa, feitas do ponto de vista da antropologia, da política, da comunicação, coube a minha vez de falar. Citei então Rabelais e sua teoria dos “agélastes” – os que não sabem rir – para fazer um confronto entre o radicalismo e a abertura do espírito. Pude perceber o ar de surpresa, para não dizer de espanto, com que a plateia, quase toda francesa, ouvia ser evocado um de seus mestres. E não posso esquecer que minha intervenção foi recebida com uma salva de palmas.

Por isso é bom ler coisas que estão no fundo do baú. A humanidade pode mudar de fachada, mas pantagrueis e gargântuas, entre outros famintos, continuam existindo. E das mais variadas espécies. Por isso a receita de Rabelais, “rir é o melhor remédio” continua também valendo...

José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar

mail pozenato@terra.com.br

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