A canção “Al cor gentil rempaira sempre amore” (“No coração gentil paira sempre o amor”) tem sido considerada uma espécie de manifesto, ou uma “canção doutrinária”, referencial para a poesia de Guido Guinizzelli. Composta por seis estâncias de dez versos cada uma, tem um caráter próximo da reflexão filosófica sobre o tema da nobreza de coração.
Nela, o poeta aborda o tema da relação entre o sentimento de amor à mulher com a nobreza de ânimo do amante. Busca demonstrar que amor e nobreza de ânimo não podem ser pensados separadamente, e que a nobreza de ânimo é superior à nobreza de sangue. A técnica de argumentação é a da analogia, característica da filosofia medieval, que em Bolonha teve a primeira sede universitária. Em cada estância, ou estrofe, é feita a analogia entre um princípio da ordem do amor e um princípio do mundo físico natural, para demonstrar a teoria do amor defendida pelo poeta.
Primeira estância, versos iniciais:
No coração gentil paira o amor
qual pássaro no verde da floresta
Guinizzelli retoma aqui um tema da poesia provençal, dando-lhe a forma de uma doutrina filosófica: o amor habita o coração nobre, como o pássaro habita os bosques e as árvores; o amor não foi criado antes do coração nobre, nem o coração nobre antes do amor. O amor e a nobreza foram criados juntos, como o sol com a luz que ele espalha, ou como o calor que deriva da chama brilhante.
Segunda estância, versos iniciais:
Fogo de amor na gentileza se prende
como a virtude na pedra preciosa,
O “fogo de amor” é uma imagem que o poeta retoma e transforma em metáfora. A pedra preciosa só adquire essa virtude depois que o sol tira dela toda impureza. Da mesma forma, só depois de o coração se tornar “eleito, bom, gentil” pode encontrar sua estrela numa mulher.
Terceira estância, versos iniciais:
O amor está no coração gentil
como o fogo aceso no pavio
Continuam as analogias: o amor se entranha no coração nobre como o fogo no pavio da lâmpada, e como o diamante na mina de ferro.
Já na quarta estância, o poeta enfrenta a polêmica entre nobreza de sangue – que não tira ninguém do charco – e a nobreza conquistada pela virtude: esta sim, é “água iluminada pelas estrelas”.
Nas duas últimas estâncias, o tom se torna metafísico e teológico. O poeta compara o esplendor da amada nos olhos do amado com o esplendor de Deus sobre as inteligências. Deus cobra então da alma do amante uma reparação por essa heresia: este se justifica explicando que a amada “era igual a um anjo” e que por isso “não tive culpa se amor lhe dei”.
Tudo isso é apenas uma amostra da riqueza dessa Canção Manifesto.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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