No próximo dia 10 de dezembro, ocorre o centenário de nascimento de Clarice Lispector, uma das musas imortais da literatura brasileira.
Mesmo nascida na Ucrânia – de onde seus pais fugiram para não caírem nas garras de Stalin, que mandava os judeus para os gulags –, Clarice Lispector se declarava brasileira de origem. Motivo: “naquela terra eu nunca pisei, fui carregada no colo”. De fato, Clarice tinha apenas dois anos quando seus pais conseguiram vir para o Brasil, no navio Cuyabá, trazendo ela e mais duas irmãs.
O começo aqui não foi nada fácil. A família ficou algum tempo em Maceió, onde o pai mascateava roupas usadas e se mudou para Recife, onde Clarice foi alfabetizada e perdeu a mãe quando tinha oito anos. Com dez anos, escreveu uma peça teatral, Pobre Menina Rica, para ser apresentada na escola: o texto nunca mais foi encontrado.
Quando Clarice estava com quatorze anos, o pai se transferiu para o Rio de Janeiro com ela e as irmãs. No Rio, Clarice fez o curso de Direito e começou a trabalhar como tradutora, professora particular e, depois, colunista de jornais.
Clarice: da longínqua Ucrânia para as profundezas da alma a partir do Brasil
Com pouco mais de vinte anos, estreou na literatura com o romance Perto do Coração Selvagem, até hoje uma leitura obrigatória. Essa obra é apontada pela crítica como um dos marcos iniciais do romance moderno no Brasil, ao lado do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
Enquanto o romance roseano mostrava as veredas intermináveis do sertão, Clarice mostrava as veredas, também intermináveis, do fluxo interior das personagens. Alfredo Bosi, historiador da literatura brasileira, assinala que Clarice Lispector criou a “poética da introspecção”. Uma poética que não fica apenas no nível psicológico, mas que “salta do psicológico para o metafísico”.
Outra contribuição trazida pela obra ficcional de Clarice Lispector, também sublinhada pela crítica, foi o “registro do feminino”. Personagens femininas sempre houve no romance brasileiro, desde a Ceci de Alencar e a Capitu de Machado de Assis até a Ana Terra de Erico Verissimo, para ficar apenas com nomes icônicos. Mas todas elas são mostradas a partir do olhar masculino. O registro do olhar feminino só vai aparecer plenamente concretizado nos romances de Clarice Lispector.
Como autor de romances, aprendi a explorar o mundo da narrativa com alguns mestres que sempre fiz questão de reconhecer e apontar. Flaubert me ensinou que a narrativa deve ser feita como se ela se contasse sozinha, sem aparecer o narrador mexendo os cordéis. Machado de Assis me convenceu que deve ser buscada, para benefício do leitor, a perfeição da simplicidade, deixando os adjetivos e as hipérboles no depósito linguístico. Erico Verissimo me mostrou que, depois do sucesso do cinema, o romance não pode deixar de exibir o lado visual dos dramas que são narrados.
Mario Vargas Llosa, que fez doutorado na Sorbonne defendendo tese sobre o romance de Flaubert, me deixou claro como é importante alternar o ponto de vista ao longo do romance, para que o leitor possa ter várias versões da mesma história: é o que acontece também no plano real, onde nunca é igual o depoimento das testemunhas de um acontecimento.
E Clarice Lispector, qual foi a lição que aprendi com ela? Não é difícil imaginar. Além de dar pistas seguras sobre como narrar o mundo interior das personagens, me ajudou a localizar como se expressa o ponto de vista feminino numa narrativa. As personagens Teresa e Pierina, condutoras da trama do romance O Quatrilho, não existiriam, ao menos não com esse perfil, não fosse a mestra Clarice Lispector.
A ponto de uma crítica literária muito perspicaz, de nome Rita Terezinha Schmidt, ter afirmado em ensaio sobre meu romance: “Merece consideração à parte a figura feminina na obra de Pozenato”. Mas paremos por aqui...
O centenário de Clarice Lispector fique então registrado, com toda a consideração e todo o afeto que ele merece. Uma lástima que nos tenha deixado tão cedo, com apenas 57 anos de idade. Muita riqueza ela teria ainda a depositar no acervo da literatura brasileira.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
pozenato@terra.com.br
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