A biografia do poeta Guido Cavalcanti, mestre de Dante e de Petrarca, foi cheia de peripécias.
Guido nasceu em Florença antes de 1260, por volta talvez de 1255: nunca foi estabelecida com precisão a data. Era filho de Cavalcante Cavalcanti, chefe de uma das casas mais poderosas e temidas dos guelfos: a tumultuada vida política da cidade dividia-se entre os guelfos e os gibelinos, e, mais tarde, entre o partido dos guelfos negros (i Neri) e o dos guelfos brancos (i Bianchi).
Em 1267, depois da Batalha de Benevento, que arruinou quase todas as famílias de Florença, numa cerimônia de paz, foram realizados noivados entre moços e meninos de um partido e moças e meninas do partido oposto, com a esperança de reduzir os conflitos. Guido, um guelfo, então com menos de 12 anos de idade, se tornou noivo de Beatrice (Bice), filha do gibelino Farinata degli Uberti. Mais tarde casou-se com ela, tendo uma filha, Tancia, e um filho, Andrea, de acordo com os documentos notariais de Florença.
Buscando a formação humanística, cultivada pelos grandes de Florença, Guido Cavalcanti foi discípulo de Brunetto Latini, ao lado de quem se tornou membro do Conselho Geral da Comuna, em 1284. Por essa época, saiu em peregrinação a Santiago de Compostela, sem ter seguido até o final. Supõe-se que foi nessa ocasião que Guido visitou Toulouse (Tolosa, em italiano) e conheceu Mandetta (diminutivo de Amande, nome muito comum na França), celebrada numa de suas baladas.
Nesse meio tempo, tornou-se cada vez mais áspero o conflito entre as duas facções guelfas. Corso Donati, chefe dos Neri, odiava Guido Cavalcanti, a quem apelidou de “Cavicchia” (“estaca”), zombando do gosto deste pelas questões abstratas e disputas filosóficas. Donati teria tentado assassinar o poeta durante a viagem a Compostela. De volta a Florença, Guido quis vingar-se e armou uma emboscada contra o rival, mas a flecha errou o alvo.
Para acalmar os ânimos, os Priori (integrantes de um Conselho de nove membros, denominado Signoria, criado em 1282) decidiram, no dia 24 de junho de 1300, com voto favorável de Dante Alighieri, distanciar os dois adversários. A posição de Dante nessa sentença dá a entender que a amizade entre ele e Guido estava de fato rompida, como transparece em alguns sonetos do último. Anos mais tarde, com a vitória definitiva dos Neri, facção radical dos guelfos, coube a Dante o amargor do exílio.
Com outros guelfos da facção branca, Guido foi exilado em Sarzana, na Ligúria, próximo a Gênova: exílio lembrado, ao que tudo indica, na balada Perch’i’ no spero di tornar giammai (“Porque não espero voltar jamais”). Em Sarzana ele ficou doente, provavelmente de malária (o nome da doença deriva, etimologicamente, de mala aria – maus ares...). Atingido pela doença, teve permissão para voltar a Florença, onde morreu, sendo sepultado a 29 de agosto de 1300.
Segue um trecho da balada em que lamenta nunca mais voltar à sua querida Florença, onde vivia sua amada: ele encarrega a balada de levar suas dores ao conhecimento dela. Por ironia, pede que a balada não se deixe ver por pessoas inimigas, porque seria presa também!...
Porque não espero voltar jamais,
balada, à Toscana,
vai tu, lépida e lhana,
direto à minha amada
que é sempre delicada
e te dará honor.
Notícia dos suspiros levarás,
cheios de medo e muita amargura;
e que não te vejam, tu cuidarás ,
pessoas hostis à gentil natura:
pois, certo, para minha desventura
tu serias retida,
o que me angustiaria;
uma morte seria,
com pranto e nova dor.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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