Caxias do Sul 21/11/2024

Pequenos barcos de papel para um novo continuar

Que, do nosso imaginário, eles nasçam e cheguem em profundos lugares levando a esperança
Produzido por Neusa Picolli Fante, 22/05/2024 às 08:36:20
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas
Foto: Morgane Coloda

Ali, sentada no chão da sala com meu neto, no horário em que só eu e ele já estávamos acordados, construía barcos com dobraduras em papel. Automaticamente as imagens de dor me invadiam.

O chão da sala estava forrado com os pequenos barcos, que eram barquinhos de amor, para resgatar a fé e a esperança daquele momento. A frota ia crescendo, e meu neto, com os dedinhos miúdos ao pegá-los, amassava-os, encantado com o novo fazer. Os deformava assim como eu me sentia ali, deformada na tentativa de prestar ajuda eficaz.

E assim ficamos rodeados com os barcos de jornal, revistas ou qualquer papel que chegava até ali... Rodeada de sonhos para sair da realidade de que era impossível me distanciar.

Penso que devemos construir muitos barcos até quando não tiver mais água. Que existam barcos de amor, de cuidado, de acolhida. Com a pretensão de salvar a todos nós de grandes desastres que nos assolam e que seguem em nós; do medo, da indiferença, da solidão, do desamparo e de muitos outros sentimentos que necessitam ser cuidados...

Que a gente continue a construir incontáveis barcos de papel sempre.

Que, do nosso imaginário, eles nasçam e cheguem em profundos lugares e levem a esperança de um novo continuar...

Queríamos ter um jet-ski ou uma lancha. Queríamos poder ter salvado. Queríamos, ao menos, poder transitar na estrada de volta para casa, para as pessoas que amamos. Queríamos aconchegar a criança no nosso colo. Queríamos construir asas para o casal estático em cima da casa e construí-las para todos que alcançaram (ou não) o telhado.

Esses sentimentos me invadem, e a todos que se juntam para continuar construindo, continuar cuidando e, principalmente, continuar amparando. Sei que todos estamos juntos no trauma, no silêncio, na dor; mas, acima de tudo, no amor que reverbera, na busca por esperança e por um novo sol de outono.

Foi ali que vi a dor e o amor se entrelaçar. Foi ali que, quando perdi a esperança, prostrei, caí de joelhos. Foi nesse momento que resgatei uma fagulha de luz ao encontro da fé que nascia mais forte em mim. Era a dor e o amor a caminho da redenção.

Simplesmente, que em meio as lágrimas que caem, que o meu/nosso amor chegue até eles...

Sim, o Rio Grande do Sul se uniu para chorar, para ajudar, para rezar, para esperar um novo amanhecer. Chorar a dor, secar as lágrimas e seguir ao encontro de novos sonhos, novas esperanças, com o pequeno barco de papel nas mãos e com o sorriso do meu neto, representando todas as crianças a nos acompanhar...

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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