Em minha primeira estada em Lisboa, dei-me conta de que precisava aprender outra língua para circular na cidade. O bonde é chamado de trem, e o trem se chama comboio. No ponto em que pedestres podem cruzar a rua, uma placa informa: “Passagem de Peões”. A camiseta dos jogadores do Benfica se chama camisola, e por aí vai.
Um dia desses em que tomei um táxi, ou “carro de praça”, o motorista, percebendo que eu era brasileiro, comentou, ao pararmos numa faixa de pedestres:
- Aqui peão é quem anda a pé. No Brasil, peão é quem cuida dos bois. Aprendi isso na telenovela “O rei do gado”.
Nesta semana, dia 30 de maio, o Diário de Notícias de Lisboa publicou um artigo muito inteligente, assinado por Carlos Fino. Há uma passagem em que ele afirma que “a sensação colhida por alguns, em Portugal, quando se passou a assistir às telenovelas, de que o Brasil estava devolvendo aos portugueses a sua própria língua...”. As reticências são do autor.
O título da matéria: Viva a língua portuguesa, na sua diversidade! Tem a minha total concordância.
O autor aponta duas “atitudes inadequadas” no que respeita à língua.
Uma é a de tentar dividir a língua portuguesa em diversas línguas, conforme a variante de cada país. E relata que, já na Primeira República (1889-1930), o Brasil votou e rejeitou uma proposta de se chamar de “língua brasileira” o português falado aqui. Outro movimento nesse sentido, e que dá motivo à matéria publicada, é o de caracterizar o português brasileiro como uma nova língua. Esse movimento está presente no meio universitário, tendo como base “diferenciações de ordem gramatical, morfológica, lexical, fonética, sintática...”
Outra atitude inadequada é a existente em Portugal, onde “é difundida a ideia de que Portugal é o depositário da versão vernácula e os outros teriam de se conformar às nossas normas”. Esse modo de pensar tem levado a episódios de discriminação, como o ocorrido e denunciado recentemente no modo de professores portugueses tratarem alunos lusófonos de outros países. “Fale português”, diziam, quando um aluno fazia pergunta com fonética, sintaxe e morfologia diferentes da de Portugal...
O articulista concluiu suas considerações de forma incisiva:
“Não há donos da língua, uma vez que ela é de quem a fala. [...] A diversidade é um valor inestimável a preservar e defender sem ambiguidades – só nessa base a Lusofonia terá futuro e a língua portuguesa continuará a ser um património comum de que todos se orgulham e compartilham e a todos mutuamente enriquece como capital cultural distintivo no mundo inteiro”.
Cito e assino embaixo. A palavra Património, grafada acima com acento agudo, conforme o original, remete a uma outra “atitude inadequada” ocorrida quando da assinatura do acordo ortográfico alguns anos atrás. O acordo já foi denunciado de várias formas, e chegou a ser chamado de “desacordo ortográfico”.
“Património” é pronunciado em Portugal com som aberto, e no Brasil com som fechado. Como grafar então da mesma forma? Se tomarmos a palavra “prêmio”, a situação fica ainda mais complexa. Sem acento, a palavra passa a ser o verbo “premiar” na primeira pessoa do indicativo. O acento é então necessário. E qual deles? O agudo ou o circunflexo?
Em resumo: tentar dividir em diversas línguas é inadequado, mas tentar criar uma uniformidade, mesmo que seja somente para a escrita, também o é: “Viva a língua portuguesa, na sua diversidade!”
Mesmo que seja nas placas de trânsito e na denominação dos meios de transporte...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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