Nos meus tempos de criança, protagonizados lá nas décadas de 1960 e 1970, também conhecida como Era Pré-Digitalzóica, o personagem mais significativo da Páscoa era o coelho. Mas não um coelho qualquer, desses de alvo pelo fofo, olhos rosáceos, rabinho pompom e nariz agitado, que eu já vira ao vivo pulando em gaiolas no Zoológico de Sapucaia.
A expectativa era pela chegada sazonal do Coelhinho da Páscoa, aquele ser mítico da canção, sempre invisível, provavelmente maior do que todos os coelhos do mundo, sorrateiro, transportador de cestos e ninhos repletos de guloseimas destinadas a arregalar as lombrigas de todas as crianças que haviam se comportado ao longo do ano.
A gente, claro, se lembrava de se comportar uns dois ou três dias antes da chegada do domingo de Páscoa (o dia anual mágico do Coelhinho), torcendo para que sarassem logo os joelhos esfolados devido aos tombos de bicicleta (arranhões se curava passando dolorosos Merthiolates e recebendo os assoprões benfazejos das mães); desencardissem as palmas das mãos e as unhas, sempre metidas nas terras e lamas do quintal catando formigas; sumissem os espinhos das plantas dos pés e outras evidências de nossas agitadas vidas infantis de crianças antigas mergulhadas em um mundo ainda tangível, real, composto de cheiros, cores, sóis e chuvas, temperaturas, texturas, sons, contatos, trombadas, risadas conjuntas, choros fugazes, empurrões e abraços.
As noites de sábado para os domingos de Páscoa se configuravam em nossos primeiros contatos com aquilo que na posterior adultice viríamos a melhor conhecer como insônia. Aponte-me uma ex-criança daqueles tempos que dormiu em alguma véspera de Páscoa e lhe mostrarei um mentiroso. Bem, também mentíamos bastante naqueles tempos, confesso, porém, jamais naqueles dois ou três dias antes da prometida chegada do Coelhinho, quando nos transformávamos em crianças comportadas, penteadas, asseadas, doces, sorridentes, gentis, silenciosas, cordatas, enfim, tudo aquilo que os adultos sonhavam que fôssemos, transferindo ao Coelhinho o ônus da exigência.
Porém, por mais que nos esforçássemos, acabávamos sempre capotando sono adentro, crianças que éramos, e acordávamos em plena manhã de domingo sendo informados de que, mais uma vez, o Coelhinho já havia passado e escondido ninhos repletos de guloseimas pela casa, destinados um para cada um de nós. Os raios de energia que pulsavam dentro de nós voltavam à carga e não havia negociação relativa a primeiro pentear cabelo, escovar dentes, tirar o pijama e vestir roupa de gente, nadadisso, coisanenhuma, pulávamos tresloucados da cama e passávamos a revirar todos os cantos da casa, do pátio, nos arbustos, nas copas e aos pés das árvores, as prateleiras, os armários, de volta para fora na garagem, no porta-malas do carro, o roupeiro no quarto dos pais, a casinha do cachorro, atrás das portas, de novo para fora, para dentro, para fora, para baixo, para trás, para o alto...
Até o clímax que encerrava o surto, concretizado com o encontro final com o ninho, repleto de doces pascais presenteados pelo Coelhinho, cuja existência já esquecíamos e agora o foco era enfileirar guloseimas, balas e ovos de chocolate para dar início ao festim que duraria não mais do que uma semana, para a posterior alegria dos dentistas locais.
Os tempos eram outros e éramos outros nós também. Só viríamos a dar atenção à simbologia da data, de seus elementos (inclusive os ovos e os coelhos) e tradições alguns anos depois, entrando na adultice e passando a temer não a ausência das generosidades do Coelhinho, mas sim os malefícios do exagero do consumo de seus regalos.
Nesta época do ano em que refletimos sobre o significado e o poder de conceitos como renovação, vida e renascimento (daí coelhos, ovos, ressurreição etc), vale a pena dedicarmos um tempinho para evocar as crianças que fomos, em qualquer época que tenha sido, para recarregarmos em nós um pouquinho da essência humana que pulsava em nossos íntimos em formação, procurando abrir mais espaço para valores que, quando exercitados com mais frequência, podem colaborar para a consolidação de um mundo mais amigável para a presença dos Coelhinhos, com mais tolerância e menos desamor.
É a única forma de haver ninhos de Páscoa esperando por todos atrás das portas, em todos os dias dos anos.
Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br
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