POR MARCOS FERNANDO KIRST
Entre os diversos pactos de convivência selados entre minha senhora e eu, para que possamos singrar com certa calmaria o misterioso e surpreendente oceano da vida a dois, figura um muito importante, que diz respeito às regras de comportamento de minha pessoa sempre que a pessoa dela está envolvida no processo de compras nos centros comerciais da região (as regras valem para quando nossa presença se dá em qualquer estabelecimento comercial, especialmente os voltados ao comércio de vestuário e afins, de qualquer lugar do planeta, não apenas da região, isso já me ficou bem claro há bastante tempo).
Até para que eu possa compreender com facilidade e lembrar sempre, as regras são simples, claras e objetivas, definidas de acordo com o alcance de minha marital compreensão. Consistem, basicamente, em eu levar junto comigo alguma leitura cativante (escolhida entre os livros a ler que povoam parte significativa das prateleiras de nossa morada) e me posicionar, com ela (a leitura cativante), em algum banco do estabelecimento (gerentes de estabelecimentos que recebem casais como clientes: atentem para a disposição de bancos estrategicamente posicionados para abrigar maridos bem treinados), onde devo ficar quietinho lendo, sem incomodar ninguém (especialmente a pessoa dela), sem apressar ninguém (mais especialmente ainda a pessoa dela), até que ela solucione suas metas aquisitivas e venha ao meu encontro me resgatar, radiante, repleta de pacotes e sacolas que eu devo de imediato me colocar a ajudar a transportar até o porta-malas do carro, sem questionar volume de gastos e encheções de saco similares.
Está combinado, e a regra tem sido seguida à risca, pelo que não reclamo, até incentivo, pois, assim, a fila de livros a ler anda... (e te digo, compadre: como tem andado!). Além de tudo, ainda ganho souvenires por bom comportamento, materializados na forma de eventuais casacos, blusões, sapatos, calças... ela sabe como me adestrar direitinho!
Mas, como sabemos (o compadre, minha senhora e eu), o mundo, diferentemente de mim, nem sempre se submete obedientemente às regras estabelecidas, e o Destino gosta de aprontar das suas, quebrando paradigmas, estremecendo padrões, exigindo reações a fim de que recordemos do fato de que não temos o poder de tudo dominar, conscientizando-nos de que a existência não cabe dentro de uma caixa de sapatos (apesar de eu ter gostado daquele de camurça azul que ela me presenteou, mas, perdão, tergiverso, voltemos ao foco...).
Assim sendo, dia desses, estando eu sentado em um dos banquinhos dispostos nos corredores do centro de compras, lendo, enquanto ela pirilampeava de loja em loja, meu sossego foi sendo paulatinamente quebrado pela aproximação também paulatina de senhorinhas que saíam do almoço na praça da alimentação e, copinhos de café preto e sacolas de compras em punho, sentavam-se à minha volta, conversando animadamente, esperando o horário de chamada para seu grupo de turistas compradeiras retornar ao ônibus e seguirem viagem. Uma, duas, três... Acomodaram-se no banco ao lado do meu. A quarta foi incitada pelas outras a tomar assento ao meu lado, onde havia espaço para uma ou duas, dependendo das dimensões da turista. Coube uma. Recolhi a perna direita mais para dentro, encolhi o ombro, entreabri as folhas do livro. Chegaram a quinta e a sexta, mais a sétima e a oitava, que se posicionaram em pé à nossa frente, aumentando ainda em mais alguns níveis (e decibéis) a animação do animadíssimo grupo de senhorinhas, entusiasmadas tanto com o almoço quanto com a qualidade de suas compras, que exibiam umas às outras.
Estou relativamente acostumado a ser bem quisto por senhorinhas, mas aquilo começou a ficar esquisito. Logo, a do meu lado passou a me cutucar com o cotovelo, enquanto conversava com as demais. Ao levantar os olhos da página em que até então estivera imerso, vi-me cercado. Eu era uma ilha de óculos rodeada por senhorinhas, sacolas, copos de café, frases altas e risadas por todos os lados. Fechei o livro e fugi dali, em busca de outro banco, em outra ala do estabelecimento. Temi a possibilidade de, em me demorando mais alguns instantes, me ver definitivamente inserido no grupo, animado, amigado de todas elas e, na sequência, instalado dentro do ônibus e viajando rumo ao (para mim) desconhecido destino de volta... e sem sacolas!
Adestradamente, percorri os corredores do local em busca da esposa, com a desculpa de encontrá-la e ajudar a carregar as compras. Bom de faro, achei-a na loja de bolsas e postei-me a seu lado, pronto para obedecer a qualquer comando, sentindo-me, enfim, seguro. Baixei as orelhas e me escondi atrás de uma arara quando o animado grupo de senhorinhas compradeiras passou pelo corredor, rumo ao ônibus da excursão. Arraigado a meus hábitos, enfim passava a ter a convicção tranquilizadora de que retornaria para minha casa dali a minutos. O cotidiano de uma vida comum pode ser mais salpicado de emoções do que costuma projetar nossa vã filosofia...
Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br
Do mesmo autor, leia outro texto AQUI