Enclausurados dentro das dimensões arquiteturais de nossas moradias, de repente vemo-nos, todos nós, os mais de um bilhão e meio de cidadãos planetários forçados ao isolamento social como medida de combater a pandemia do coronavírus, vemo-nos, repito, forçados a descobrir – ou mesmo a redescobrir, ou mais ainda a, finalmente, estabelecer e formatar – nossa verdadeira relação com o ambiente físico que cunhamos de lar. Muitas vezes, em função do atropelo cotidiano ditado pelo acúmulo de compromissos empilhados nas nossas agendas, temos dificuldades (e falta de tempo, e de energia, e de ânimo) em estabelecer uma relação de intimidade com os ambientes constituintes da nossa morada, seja ela própria ou alugada, grande ou modesta, dos nossos pais que nos hospedam ou dos pais aos quais agora hospedamos nós.
Passamos reto pelas nossas casas da mesma forma como corremos pelas ruas e calçadas da cidade rumo ao trabalho, à academia, ao supermercado, às consultas médicas, ao cinema, ao parque, aos bares, à rodoviária. Na maioria das vezes, agimos como se fôssemos hóspedes momentâneos em nossas próprias residências, ambientes que usamos como fugazes depositários de nossos cansaços físicos e mentais, boxes de reparo e pit-stops velozes que garantem a reordenação necessária para de novo nos lançarmos ao mundo, sem prestarmos atenção aos detalhes dos recantos que estão ali esperando para criar conexão conosco e transformar o ambiente de fato em lar, com todas as três curtas e tão potencialmente amplas letras.
Agora, encerrados em casa à força, temos, enfim, a chance (e o tempo, e a disposição e a energia) para criar essa conexão, que pode, sim, nos revelar mundos, ao passo em que, nesse mesmo processo, temos ao nosso alcance a ponte que pode nos conduzir à (re)conexão com nosso lar interior, ao qual também somos devedores das atenções e dos cuidados que sempre deixamos de lado com as mesmas desculpas citadas acima. Nada melhor do que, nesse momento, relembrar (ou sugerir) a leitura de um clássico da literatura cujo mote é exatamente esse, tornando-se, assim, atual e consolidando sua condição de literatura perene e universal: “Viagem ao Redor do Meu Quarto”, de Xavier de Maistre (1763 – 1852).
A trama é simples, porém, altamente metafórica e simbólica e, o que é melhor, tecida sob as linhas do humor elegante e do estilo elaborado do escritor francês que era admirado (e serviu de inspiração em termos de estilo) por Machado de Assis. Na obra, o próprio autor, transformado em personagem principal e narrador, decide colocar-se em uma quarentena de 42 dias (atualíssimo) dentro dos domínios (exíguos) de seu próprio quarto e, nesse período, narrar as aventuras mentais que consegue elaborar a partir de sua interação com os objetos nele contidos, bem como as dimensões do ambiente e sua composição física.
Uma poltrona, uma escrivaninha, um quadro, os livros, o travesseiro, a cama, a janela (e o infinito que se pode alcançar a partir dela), o teto, o assoalho... Tudo serve de inspiração e de ponto de parada para a reflexão nessa inusitada viagem que Xavier de Maistre faz e nos ensina a fazer, utilizando o espaço e os objetos exteriores como ferramentas para escrutinar os domínios infinitos de nossas próprias almas.
Se o poeta lusitano nos ensina que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, o romancista francês amplia o conceito e nos faz enxergar que uma alma não pequena é capaz de nos conduzir por viagens impressionantes e transformadoras sem que precisemos, necessariamente, sair de nossos quartos (ou de dentro de nós mesmos). Uma excelente proposta de postura e de ação (externa e interna) para todos nós, subjugados literalmente a esse inusitado e histórico período de quarentena de proporções planetárias. Boa leitura!
Marcos Fernando Kirst é jornalista e escritor
e-mail: marcos.kirst@gmail.com