Caxias do Sul 22/10/2024

Olhar além do que está presente

O preço do sossego de hoje reflete em peso para o futuro
Produzido por Neusa Picolli Fante, 19/10/2024 às 08:30:40
Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas
Foto: Morgane Coloda

“Celular só depois dos 15, meu filho”, dizia a mãe para o menino de olhos grandes e sedentos, que fixavam nela e desejavam entender por que os colegas tinham e ele não podia ter.

“Mas, mãe, meus colegas têm” – argumentava ele.

Ela era incansável em apresentar para o filho o quanto era prejudicial andar grudado nesse instrumento. Em lugares aleatórios, mostrava o quanto as crianças perdiam se prendendo em um celular.

Revelava ao menino que, em vez de assistir ao jogo de basquete ali na arquibancada, na frente deles, ao lado do pai, havia um garoto da idade dele que não tirava o olho e o dedo do celular, perdendo a oportunidade de relacionar-se com o pai, de torcer e de se divertir.

Todo dia, mostrava crianças que, em vez de interagirem, brincarem, ficavam presas no celular, perdendo pedaços importantes de vida que não voltaria. Seja no restaurante, no mercado, na pracinha perto de casa, a cena se repetia.

O menino foi entendendo, por meio das frustrações que vivia, um novo jeito de compreender e de enxergar a vida. Só que ainda não sabia que isso lhe renderia abrir seus horizontes e estar mais conectado com a vida que vivia.

Percebo que tolerar as frustrações nos deixa fortes, conectados. Quanto mais protegermos nossos pequenos para que não passem falta de coisas ilusórias, pequenas decepções, mascarando o que acontece com eles, menos recursos eles desenvolvem para lidar com as situações difíceis da vida. No entanto, também temos um importante papel de não desampará-los diante desses momentos difíceis, mas mostrar que não estão sozinhos e que faz parte da vida vivê-los.

O problema ocorre quando os adultos ao redor das crianças não sabem viver frustrações, ou “não querem se incomodar com o pequeno, que insiste em ter algumas coisas”, como me dizia um pai. Vê-se pais cedendo para ter tranquilidade. Sabemos que o preço do sossego de hoje reflete em peso para o futuro. Sem dizer que superproteger o filho é torná-lo fraco e, de certa maneira, é anulá-lo e deixá-lo sem iniciativa.

Que seja um aprendizado em conjunto, adultos e crianças aprendendo a lidar com falhas, com faltas, com frustrações. Que não se cansem de tentar. Que conversem muito nessa jornada de garantir novas ressignificações. Não é coerente permitir que se ausentem de serem crianças, de construir, de inventar mil maneiras de brincar em função do entrar no celular.

Parabéns às mães e aos pais que optam por mais trabalho, mais dedicação, por qualidade de estar realmente presentes na vida dos seus. Esses pais estão criando crianças conectadas, não com a TV ou celular, mas com a vida. Eles ajudam seus filhos a se tornarem adultos presentes.

Neusa Picolli Fante é psicóloga clínica especialista em lutos e perdas. É palestrante e escritora, autora de oito livros: três de psicologia, três de crônicas e dois de poesia.

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