POR EULÁLIA ISABEL COELHO
Se o momento atual pede calma aos nossos corações, refletir sobre questões fundamentais à existência humana pode nos levar a outra escuta, outro olhar. Com inéditas camadas de afeto e um modo mais harmonioso de viver.
Essa é uma proposição exagerada? Impossível? “São tempos difíceis para os sonhadores”, nos lembra “O fabuloso destino de Amélie Poulain”. Nem por isso deixamos de idealizar. Em “Imagine”, Lennon argumenta: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único”. Pois é, não sou. Não somos! Queremos um mundo melhor. É por isso que “Okja” (2017) me parece um filme propício em tempos de recolhimento. A obra evidencia tais questionamentos através da fantasia.
Produzido pela Netflix e dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-ho, o mesmo do aclamado “Parasita” (vencedor em Cannes 2019 e de quatro Oscar neste ano), “Okja” segue a linha de crítica do cineasta, cujas narrativas são voltadas a temas controversos e atuais. Essa é a sua marca. Seu cinema é catarse social.
As abordagens de Bong Joon-ho incomodam, desassossegam, nos propõem a coragem de ver o que evitamos ver. De ouvir o que nos fere os ouvidos. E, também, de não mais calar diante do sistema. Não, não se trata de sairmos bradando por aí. É mudança interna, de paradigmas. E, sabemos, mudar é bem complicado. Quando a arte nos auxilia nesse sentido, é porque já estamos aptos a receber o recado.
“Okja” me traz à mente uma frase de “Doutor Sono” (2019), que mostra a vida adulta de Dany Torrence, o menino de “O iluminado” (filme inspirado no livro de Stephen King, dirigido pelo genial Stanley Kubrick): “O mundo é um lugar faminto. As coisas sombrias são as mais famintas e elas comem o que é iluminado”. “Okja” mostra o sombrio do nosso tempo, as artimanhas capitalistas e corporativas e como elas nos afetam. A fábula de Bong Joon-ho explicita a fome desse mundo insano, em que a norma é consumir sem questionar a procedência.
A CEO da multinacional Mirando Corporation, Lucy (Tilda Swinton, propositalmente caricatural), anuncia a descoberta de uma nova espécie animal no Chile. O superporco, assim chamado pela sua estatura e aparência. É, segundo ela, uma fonte de alimento eco sustentável, não transgênico e que ajudará a diminuir a fome global. São 26 superleitões distribuídos ao redor do planeta e criados por fazendeiros escolhidos pela corporação. Lucy, explica, com gestos exagerados, que em 10 anos haverá um concurso para eleger o melhor superporco, só então a espécie será conhecida pelo público.
Okja, superporca criada nas montanhas próximas a Seul, é a escolhida. Seu destino, então, é retornar aos EUA. O animal, cuja docilidade contrasta com seu tamanho, vive junto a Mija (Seo-hyun Ahn) e seu avô. Os laços afetivos entre elas são tais que logo ficamos cativados.
Esse é um recurso de Bong Joon-ho para avançar na narrativa e chegar ao âmbito da indústria de carnes processadas. Vemos Mija tentando resgatar Okja, com a ajuda da Frente de Libertação Animal. Jovens ativistas que logo se revelam corretos e assertivos em sua luta, deixando claro que, apesar das máscaras, não são terroristas.
A partir desse encontro, o filme ruma para revelações sobre a corporação de alimentos e seus propósitos nada éticos. Reviravoltas, em tons cômico/dramáticos e de aventura, não deixam dúvidas sobre a proposta de Bong Joon-ho: “Okja” é uma alegoria ao universo contemporâneo.
Vemos o espetáculo midiático criado pela empresa através de seu “rosto símbolo”, o histriônico apresentador interpretado por Jake Gyllenhaal, talvez em sua atuação mais inusitada. Os valores corrompidos, as disputas internas e as jogadas de marketing são abordados, assim como a legitimidade do amor, as questões ambientais e a luta em defesa da natureza.
Os que se identificam com a narrativa, por certo são os sonhadores, os que percebem as sombras e sua fome a rosnar à nossa mesa, ou bem se poderia dizer, à nossa alma. Bong Joon-ho imprime sua digital em um cinema já bastante desgastado por produções banais. Com ele, retomamos a beleza, a ironia do discurso fílmico afinado a seu tempo.
“Okja” nos leva a repensar a relação humana com os animais e a crueldade a eles imposta para que nos sirvam de alimento. Mesa posta, meio ambiente em apuros e produtos geneticamente modificados. Bong Joon-ho afirma que “costumamos ter duas perspectivas quando se trata de animais. Ou nós olhamos para eles de maneira amigável, como parte da nossa família, ou tomamos o ponto de vista oposto e escolhemos tratá-los como comida”.
Foi com “Okja” que repensei minha relação com o consumo de carne vermelha. Se uma obra cinematográfica é capaz de gerar uma nova atitude no espectador, então, ela foi muito além de um roteiro bem escrito. É a arquitetura de possibilidades que se descola do já instituído. Okja é o que chamamos de soco no estômago, pelo menos no dos sonhadores. Outros podem chamá-lo de panfletário, clichê e previsível. O fato é que “Okja” ilumina a perversa ordem estabelecida.
Curiosidades:
- “Okja” foi o primeiro filme da rede de streaming Netflix a disputar a Palma de Ouro em Cannes. Por não ter sido exibido nos cinemas franceses, causou polêmica no festival presidido, àquele ano, pelo cineasta Pedro Almodóvar.
- O superporco foi criado de modo hiper-realista a partir de observações feitas ao comportamento de porcos e hipopótamos.
- Depois dos créditos tem um bônus surpresa!
Eulália Isabel Coelho (Biba) é jornalista, professora e escritora
e-mail:bibacoelho10@gmail.com
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