Por Eulália Isabel Coelho
“Tudo é questão de despertar sua alma”, afirmava o escritor Gabriel García Márquez. Assim compreendo os memoráveis acordes de Il Maestro, descortinando em suas composições a poesia que habita em nós. Despertando-nos para além das telas em sua harmoniosa plasticidade sonora. Algumas de suas músicas aquietam o coração, outras alertam os sentidos, muitas desvelam finas camadas de romantismo, várias enlevam nosso espírito. Tudo sob a regência desse homem que dedicou sua vida às notas musicais, às criações que eram também seu respirar. E que, a cada trilha sonora concebida, tornava-se também a nossa respiração.
Genial, talvez seja a palavra exata para definir Ennio Morricone (1928-2020), pois ela abarca outras tantas: original, grandioso, criativo. Incansavelmente criativo. Il Maestro, assim era chamado carinhosamente, tinha desde jovem um gosto musical refinado, mas não restrito. Agradava-o experimentar recursos sonoros não convencionais. Foi ao criar sem amarras que colocou sua verve musical em um patamar extraordinário que elevou consigo a arte cinematográfica.
Conta-se que começou a criar pequenas peças musicais precocemente, na infância, quando seu pai o ensinou a ler partituras e a tocar vários instrumentos. Morricone estudou música e especializou-se em harmonia, composição e trompete (mesmo instrumento paterno). Nos anos 1940, costumava tocar em clubes de jazz com o pai. Foram os primeiros movimentos em direção à sua poética musical singular.
O ano de 1958 foi decisivo para sua formação, quando participou de um seminário na Alemanha, ao lado do vanguardista John Cage (1912-1992). Lá assimilou a máxima de que “todos os sons pertencem ao reino da música”. Foi assim que, inspirado por essa ideia, incluiu sons de sinos, sopro de vento, rangidos, tiros e mais, como parte da sua composição musical na primeira parceria junto ao colega de infância, Sergio Leone.
“Eu gostava de trabalhar o som da realidade, o que ouvimos todos os dias. Esses ruídos que nos cercam têm sua própria música e poderiam compor outra comigo”, explicou certa vez. Referia-se à Sinfonia dos Ruídos, de Por uns Dólares a Mais (1964), o primeiro da Trilogia dos Dólares que ficaria marcado no imaginário popular e o tornaria conhecido internacionalmente.
Il Maestro em um dos seus últimos concertos
Il Maestro gostava de desafiar-se, fazer diferente do que ele mesmo já fizera. Compreendemos isso ainda na colaboração com Leone. Se no segundo longa, Por uns Dólares a Mais (1965), ele compôs algo similar ao primeiro, a pedido do diretor, no terceiro isso não aconteceria. Para Três Homens em Conflito ou O Bom, o Mau e o Feio (1966), ele disse a Leone que não faria o mesmo novamente. “Não quero que a gente trabalhe assim. Não quero me repetir, me deixe fazer o que eu quiser”. E fez.
Ennio, único em seu talento
É sabido que Morricone transitava pelo clássico, o operístico e o pop. Entrelaçava estilos contrastantes produzindo, assim, temas sublimes. Sua imaginação musical não tinha limites e oferecia às narrativas fílmicas a atmosfera e o estilo necessários à fruição. No entanto, ele não se restringiu apenas ao cinema, tendo criado peças notáveis para rádio, televisão e teatro.
Recebeu de Clint o Oscar pelo conjunto da obra
Um de seus trabalhos mais expressivos fora da Sétima Arte, e que poucos conhecem, foi a parceria com Chico Buarque quando de seu exílio em Roma, em 1969. Per un Pugno di Samba, trocadilho do filme de Leone, é considerada uma obra vanguardista.
Em entrevista a O Globo, em 2007, Il Maestro afirmou:
“Foi uma experiência sensacional. Gosto muito daquele trabalho. Na época, ele foi considerado um disco de vanguarda, muito original. Tanto que o público italiano não estava acostumado com aquelas ideias e o disco não teve o sucesso esperado. Olhando para trás, vejo que foi uma experiência bem à frente de seu tempo.”
Ouça a parceria de Chico e Morricone AQUI
ACORDES MEMORÁVEIS
Sob a batuta dos meus convidados, uma composição afetiva ao maestro
MANFREDO SCHMIEDT, integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre – OSPA, diretor artístico e regente titular da Orquestra da Universidade de Caxias do Sul desde 2002 até seu encerramento em 2020
“No mundo, volta e meia, aparecem gênios que nos deixam de queixo caído seja porque foram dotados de um intelecto incrível ou de um talento fora do comum. No campo da música erudita, compositores como Bach, Mozart, Beethoven, Tchaikovsky, Villa-Lobos e tantos outros, nos impressionam com a sua genialidade. Impossível pensar em uma programação artística de uma grande orquestra sem a presença deles.
Igualmente, quando falamos nos grandes sucessos de bilheteria, jamais podemos pensar no filme sem sua trilha sonora, aquela que é responsável por valorizar cada cena através da música e/ou de efeitos sonoros. Os grandes diretores se aliam a compositores geniais para desenvolver e valorizar cada momento do filme, independentemente do gênero.
Dentre os mais destacados neste ramo está Ennio Morricone, que nos impacta com a beleza de suas obras, versatilidade em vários estilos, perfeccionismo, competência como regente. Suas qualidades deixaram marcas inesquecíveis na história da música dedicada ao cinema. É impressionante a maneira como ele conciliou tantos elementos musicais que descrevem sentimentos que se misturam magicamente aos personagens. Sua genialidade nos brindou com obras como a que ouvimos no filme A Missão, Era uma vez no Oeste e Cinema Paradiso.
Tive o privilégio de reger algumas de suas belas melodias. Em especial o Gabriel's Oboé do filme A Missão, a obra que mais me emociona”.
Ouça AQUI Gabriel's Oboé em live da Orquestra da UCS sob regência de Manfredo Schmiedt
Jeremy Irons em A Missão
CAMILA CORNUTTI BARBOSA, coordenadora dos cursos de Fotografia e de Publicidade e Propaganda do Centro Universitário da Serra Gaúcha – FSG. Uma apaixonada por música.
“Desde que o som adentrou o universo cinematográfico como uma possibilidade técnica, as trilhas sonoras têm cumprido um papel de relevo para as narrativas audiovisuais. Ennio Morricone provavelmente tenha sido o maior compositor de trilhas do século XX.
Não sou uma especialista, mas sua capacidade de dar enlevo às cenas que seguem povoando nossa memória afetiva (que disso se faz o grande cinema – ser matéria para o mundo e o tecido da vida) é, de fato, emocionante.
O que seria de Três Homens em Conflito, de Sergio Leone, sem os acordes de Morricone dando o tom para o duelo do Bom, do Mau e do Feio? A Missão, de Roland Joffé, certamente não traria o mesmo clima e contaria uma história com muito menos dramaticidade. Basta ouvirmos o tema final de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, para evocarmos o enredo com as lembranças do menino Toto e seu amor pelas projeções e magia dos filmes.
São inúmeros exemplos que habitam essas recordações promovidas por Morricone. Para quem deseja ouvir e adentrar rapidamente em sua obra, recomendo a audição do álbum do violoncelista Yo-Yo Ma, junto com Morricone, tocando as principais trilhas sonoras do mestre.
Talvez a gente possa acreditar que haja um portal de música e beleza no dia 6 de julho. Em 1971, perdemos Louis Armstrong. Em 2019, nesta data, João Gilberto se foi, com toda sua genialidade e grandeza. Um ano depois, Morricone nos deixa com este legado absoluto para a história do cinema, da música e da delicadeza”.
Ouça Yo-Yo Ma com Ennio Morricone AQUI
BETO SCOPEL, trompetista, membro da Orquestra Municipal de Sopros de Caxias do Sul, proprietário e curador da Tum Tum Produtora
“Fui conhecer este gênio da música lá por volta de 2014, quando a Orquestra Municipal de Sopros trouxe como convidado especial o maestro e compositor italiano Giovanni Luigi, que estudou com Ennio Morricone. Ele ministrou um curso de trilha sonora para filmes e executamos em concerto obras de Ennio Morricone.
Com esse curso e concerto, entendi muito da obra deste ícone mundial da música. Ele revolucionou a música feita para o cinema. Fez com que a trilha cinematográfica alcançasse protagonismo junto às películas. Quando ouvimos a trilha de Morricone, logo nos aparece a visão de cenas dos respectivos filmes. Além do que, suas melodias têm aquele lirismo onde o menos é mais, ou seja, poucas notas mas com riqueza melódica incrível, digno de um dos maiores gênios da música contemporânea.
São tantas as melodias lindas, mas fico com a minha preferida, que é o tema do filme Cinema Paradiso, do Giuseppe Tornatore, que traduz muito a sinergia entre o diretor e Ennio Morricone, as cenas, o roteiro todo se encaixa muito com a trilha, não se consegue ouvir só a trilha sem lembrar das cenas e vice-versa”.
Ouça AQUI a trilha sonora completa de Cinema Paradiso
Cinema Paradiso, inesquecível
ALEXANDRE FRITZEN DA ROCHA, doutor em música, professor do curso de Música e do curso de Produção Audiovisual - Cinema, no qual leciona Narrativas Sonoras, da Universidade de Caxias do Sul - UCS
“O traço composicional de Ennio Morricone permeia muito da trilha sonora que se ouve depois dos anos 70. A versatilidade do habilidoso compositor italiano está presente no cerne da cultura pop da música fílmica. Mas a obra de Morricone não se encerra no cinema. Ela permeia a música popular e de concerto de diferentes correntes estéticas. Inúmeros são os compositores, e dentre eles me incluo, que bebem da fonte eclética e ousada da obra do compositor.
Nesta semana perdemos esse grande músico. Mas feliz de nós por ainda termos imortalizada a obra do grande maestro. O seu legado é o generoso testamento que nos deixa para todo o tempo.
Vai em paz, Ennio Morricone, e obrigado por tua música”.
Acesse AQUI a filmografia completa das trilhas do mestre Morricone
Oscar por Os Oito Odiados, de Tarantino
DE OLHO NA PARTITURA
Morricone teve mais de 500 assinaturas em trilhas sonoras, foi indicado seis vezes ao Oscar e recebeu mais de 80 prêmios entre Europa e EUA.
Entre tantas trilhas, o maestro compôs para Teorema (1968), de Pasolini, Ata-me (1989), de Almodóvar, Cinzas no Paraíso (1978), de Terence Malick e A Lenda do Pianista do Mar (1998), de Tornatore.
A trilha de Os Abutres Têm Fome (1970), de Don Siegel, com Clint Eastwood, foi a que o apresentou aos EUA.
As bandas Metallica e Ramones sempre homenagearam Morricone, reproduzindo em seus shows, (a primeira na abertura, a segundo no encerramento), sua música The Ecstasy og Gold.
Ouça a versão do Metallica AQUI
Em entrevista à revista inglesa “Dazed”, em 2006, o maestro disse como se sentia em relação às homenagens: “Significa que minha música é simples e valiosa ao mesmo tempo”.
Em 2007, o Metallica regravou The Ecstasy of Gold, para o álbum We All Love Ennio Morricone, em tributo ao maestro. Bruce Springsteen, Andrea Bocelli, Yo-Yo Ma, Roger Waters, Eumir Deodato e Herbie Hancock, entre outros, participaram da homenagem.
A versão de Springsteen para Once Upon A Time In The West, do filme Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone, venceu o Grammy de Melhor Performance Instrumental de Rock, em 2008.
O cantor Morrissey, contou com a participação de Ennio Morricone em Dear God Please Help Me, faixa do álbum Ringleader of the Tormentors (2006).
Dire Straits, The Mars, Radiohead, Muse e outros, tiveram influência do maestro e também gravaram algumas de suas músicas.
Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora de cinema e escritora
bibacoelho10@gmail.com
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