Tem um cara que é o Alfredo, um professor aposentado.
Mas também, com um nome desses, se não for um professor aposentado…
Dava aula de literatura, português, na escola do bairro.
Fã do trovadorismo. Se pudesse ter vivido numa época que não fosse esta nossa, escolheria os anos de 1200, 1300 e pouco, na Galícia.
Meio que pra ilustrar como seria, o Alfredo sobrevive à base de pão seco, água e cabra.
E fica esperando a Rejane aparecer com a montoeira de roupa que ela estende no pátio. Daí ele, espichando o pescoço acima do muro, faz ecoar uma espécie de lira mirim, cantando:
Ai, a coita sem o coito
Lélia doura
Nos frascários ou bafordos
Lélia doura
Tu te matas entre os mouros
Lélia doura
Eu me morro trás os montes
Lélia doura
Depois vai correndo perguntar se a Rejane sentiu. Não pergunta se ouviu ou entendeu: ele precisa saber se ela foi capaz de sentir a trova.
– Bom – diz a vizinha –. Até já escutei a palavra coito, mas coita… E quem é essa tal de Lélia Doura?
Inconsolado pela ignorância da musa, que desconhece o galego arcaico e o moçárabe, ou talvez contente porque a Rejane entendeu a parte do coito, o Alfredo se serve um corno de vinho azedo, desses aí da colônia, perfeitamente medievais, e põe-se a compor novas trovas.
Toda tarde é isso, desde que ele se aposentou. Mesmo quando não tem sol e a Rejane não estende roupa, ali pelas três, três e pouco, bem na hora em que os peões aposentados estão mastigando a baba pós-sesta, faz-se ecoar a lira mirim do Alfredo.
A piazada diz que ele é doido – mais um – e que devia se juntar com a Soraia, outra profe aposentada, só que de matemática.
A Soraia, por sua vez, diz que o Alfredo, pobrezinho… E o Alfredo, sobre a Soraia, só sabe dizer que é um nome mouro, digno de uma brava (e braba) feiticeira.
Mas a Rejane ele chama de Regina.
Volta e meia a gente escuta aquela outra, mais direta:
Régia vestal, ó amiga!
Minh’alma em dó vos convida:
usai-me as faces e a língua
para abluir donde pisas.
Mas a Rejane nem quéco. O que deixa o Alfredo mais enamorado, já que a indiferença é bem o que se espera de uma donzela medieval.
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.
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