Era um sábado à tarde.
Afrânio tinha acabado de ler A Revolução dos Bichos, um livro beleza, que todo mundo devia ler. Ele mostra como o poder faz mudar a cabeça de quem chega lá. Foi à biblioteca da cidade para trocar por outro livro e só estava lá a atendente. O resto da cidade devia estar passeando no shopping, ou vendo televisão em casa. Perdendo tempo precioso, enfim. Afrânio deixou o livro no balcão e foi para as estantes escolher outro. Ele gostava de apalpar e sentir o livro antes de pegar para ler. Foi aí que ouviu aquela voz, meio fanhosa, meio rouca:
- Oi, Afrânio! Está virando rato de biblioteca?
Olhou para um lado e outro, por trás das estantes, e não viu ninguém. Ouviu então uma risadinha de quem tira sarro:
- Não adianta procurar, você não vai me ver.
- Quem é você?
- Sou um rato de biblioteca. – Fez uma pausa e emendou: - Sou o rato desta biblioteca, para ser mais preciso.
Afrânio deu mais uma olhada. Podia haver alguém atrás da cortina, quem sabe se enfiado em cima de uma estante. Nada. Ninguém.
- E ratos falam? – perguntou, começando a duvidar do seu juízo.
- Você não acabou de ler um livro em que a bicharada toda fala? Aliás, se posso colocar um reparo nessa história do George Orwell, é que ele não pôs nenhum rato falando. Um rato, modéstia de lado, podia ter mudado o rumo da história. Não ia ser como aquela gata que não saía de cima do muro, sem decidir de que lado ficava. Esopo foi mais simpático, na história do rato e do leão... – Interrompeu-se e a seguir emendou: - É verdade que ele escreveu também a história da assembleia dos ratos, quando decidiram pôr uma sineta no pescoço do gato.
- E o que mais você leu?
- Tudo! – a voz quase virou um guincho. – Tudo!
- E como é o seu nome?
- Você escolhe – e riu de novo com aquele guincho de excitação. – Há um milhão de nomes aqui. Pode ser o de um autor: Homero, Sófocles, Virgílio, Dante... Ou de um personagem: Aquiles, Édipo, Eneias, Beatriz...
- E como sabe o meu nome?
- Eu já disse. Li tudo. Rato lê também o livro de registro da biblioteca.
- Como é que você é? Na aparência.
- Mania essa de querer fotografia de tudo. Bastam as palavras. Com as palavras você pode imaginar. Como é que você me imagina? Usa a imaginação!
Afrânio embatucou. Mas ele tinha recebido uma pista. O nome podia ser o de qualquer um dos autores citados, e arriscou:
- Você é Virgílio e está vestindo uma toga romana...
– Arma virumque cano! – ouviu, junto com uma risada. – É uma boa escolha! Mas que a toga seja folgada, que eu não gosto de aperto.
Afrânio passou a mão num livro, sem escolher, e foi até o balcão da atendente. Não era ele o rato da biblioteca?
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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