Caxias do Sul 23/11/2024

O Quarteto Realista-Mágico – Episódio 2

Em que se conclui a questão sobre a transformadora experiência de encontrar semelhantes afeitos à leitura pelas plagas de Caxias do Sul
Produzido por Paulo Damin, 13/07/2022 às 07:33:35
Foto: ARQUIVO PESSOAL

O Dramático era um polaco careca precoce, cheio de enxaquecas e cacofonias. O Absurdo era um gringo encrustado no Fátima Baixo, ou Baixa, que tinha muito jeito mas não: quem era de fato era o Trágico, assumidamente fã de Jean Genet aos dezessete anos. Todos muito crônicos, enquanto eu era o cronista. Nunca tive talento para ser personagem.

Naquela época, não havia internet nem telefone. Era preciso marcar as reuniões do Quarteto por telepatia. A gente pensava: é sábado, está chovendo em Caxias, vou levar meus rabiscos para a igreja de Santos Anjos, a gurizada vai aparecer. E aparecia. Porque amizade era isso: tédio e sincronia.

E havia a literatura. Esse propósito de vida. Cada um levava um livrinho. Tipo assim:

“Lúcio Cardoso ou nada”, dizia o Dramático.

“Artaud!”, retrucava o Trágico.

“Isso é porque vocês nunca leram Papillon, dizia o Absurdo.

Eu tomava notas, tentando ficar calmo diante da angústia juvenil de jamais me atualizar a tempo diante da literatura clássica que me aparecia vanguardista todo dia.

Conquistar Caxias para a beleza, eu me repetia, como um mantra, enquanto o Quarteto Realista-Mágico se digladiava acerca de qual perspectiva estética devia ser adotada na Colônia.

O Dramático achava que devíamos explorar os fantasmas latentes no imaginário cristão dos agricultores. O Absurdo defendia que a chave estava em escancarar os rinocerontes recalcados. Eu dizia que o segredo era rir de nós mesmos e o Trágico, nesse meio tempo, declarava seu amor a alguém no orelhão da esquina.

Nunca chegávamos a uma solução comum. Afinal, valia tudo, era literatura, cada um com uma perspectiva. Cada um era um exército de um homem só, como disse dramaticamente Tabajara Ruas, segundo meu amigo Absurdo, fã de Dyonélio Machado, em conversa que flagrei com o Trágico, numa noite de cães danados.

Mas algo precisávamos concretizar. Éramos o Quarteto Realista-Mágico. Éramos os Quatro Leitores do Apocaxias.

“No princípio está a palavra”, dizia o Dramático.

“No princípio está a ação”, dizia o Trágico.

“No precipício”, ensaiava o Absurdo, e acabava a lauda da crônica que eu vivia tentando escrever para o jornal local.

Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.

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