Na aurora da minha vida, eu lia o tempo todo. Na parada do ônibus, nas filas de banco ou banheiro, até na sala de aula. Eu precisava recuperar o tempo perdido por ter nascido em Caxias, nos anos 1980, e não em Paris, em 1890... E ler em público era uma forma de me sentir menos estrangeiro, porque eu ia reconhecendo outros leitores.
O primeiro que apareceu foi o Dramático.
“Pensei que eu fosse o único leitor da cidade”, disse ele, no recreio da escola.
Eu estava lendo Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado. Aí o Dramático tirou do capote Memórias do Subsolo, do Dostoiévski. Foi amizade à primeira vista. Formamos uma dupla que se encontrava para discutir os sofrimentos dos jovens vertentes que queríamos ser.
O segundo leitor que apareceu foi o Absurdo.
“Pensei que eu fosse o único leitor da cidade”, disse ele, sentando ao meu lado, na sarjeta.
Eu estava lendo Um, nenhum e cem mil, do Pirandello. Ele tirou da cartola Esperando Godot, do Beckett. Então se formou um trio, com o alívio cômico que o Absurdo dava às conversas com o Dramático.
O último leitor foi o Trágico.
“Pensei que eu fosse o único leitor da cidade”, disse eu, parando um rapaz de óculos que caminhava lendo na rua.
Ele estava com o Uivo, do Allen Ginsberg. Eu saquei Viola de Bolso, do Drummond. E assim estava formado o Quarteto Realista-Mágico.
Nosso primeiro QG, ou segundo GH, era a escadaria da igreja de Santos Anjos, onde líamos em voz alta até a polícia aparecer. Ali ensaiamos teorias (“livro bom é o que parece que estamos escrevendo enquanto lemos”) e criações. O Dramático escrevia sobre famílias irreconciliáveis; o Absurdo, sobre o fato evidente de que a vida é o sonho de um sapo na sanga; o Trágico escrevia sobre amor e eu sobre amizades que duram algumas crônicas.
Nosso plano era salvar a literatura municipal ou, como eu parafraseei solenemente, após vencer os prólogos de um romance eterno, o plano era conquistar Caxias para a beleza. Os métodos? Primeiramente, ler tudo que tivesse sido escrito por Pozenato, Paviani, Pirandello, Dostoievski e, evidentemente, Tadiane Tronca. Segundamente, subverter. Era aí que aparecia a polícia mandando a gente parar de chorna.
Paulo Damin é escritor e tradutor em Caxias do Sul.
Do mesmo autor, leia outro texto AQUI