POR MARCOS FERNANDO KIRST
Estamos em pleno acordo neste tópico aqui em casa, a senhora minha esposa, eu e o gato: precisamos urgentemente trocar a balança. Essa que há anos descansa sorrateiramente sobre o criado-mudo do banheiro, sempre pronta a ser acionada em momentos de dúvida adiposa, não está mais cumprindo de forma satisfatória as funções para as quais é destinada a partir da fábrica, em decorrências das quais costumamos adquirir exemplares de sua espécie, almejando uma convivência duradoura, harmoniosa, satisfatória e construtiva. Só que agora não, não dá mais.
Já faz algum tempo que ela vem deixando a desejar, foi o que detectamos a partir de uma conversa franca a três, esta manhã, depois de a esposa descer dela e tocar com os pés desnudos o frio porcelanato do piso do banheiro e soltar um grito. Acudimos de imediato, o gato chegando frações de segundo antes de mim, atropelando minhas canelas, eu já imaginando uma queda, típico acidente doméstico, o gato movido pela extrema curiosidade omissa que caracteriza suas atitudes cotidianas, eu descabelado pelo susto e pelo desencontro matinal com o pente que caracteriza meu visual matutino até a hora do banho.
Mas não houvera queda, ela seguia estática, ereta, em pé, sob pleno domínio de seu equilíbrio físico, mas claramente deixando a desejar no quesito do equilíbrio da tolerância, que em definitivo se esgotava naquele instante, em relação à dita balança. “Assim não dá, estão sobrando quilos aqui neste visor”, exclamou, olhando nos olhos alternadamente entre os meus e os do gato, criatura sempre atenta, compenetrada, silenciosamente concordante. “A gente sobe e ela pesa uma coisa; a gente desce e sobe de novo, ela pesa outra, mais alta; a gente tenta pela terceira vez e o resultado é um terceiro, e se fizermos a média, mesmo assim, a informação é lamentável”, relatou ela, indignada, apontando para a vilã que descansava no chão, recém-pisada, o ponteirinho do visor ainda balouçando para lá e para cá.
“Precisamos trocá-la. Esta balança só nos traz fat knews”, sentenciei. O gato concordou com o olhar e com o silêncio de quem consente calando. A esposa também, saindo do banheiro e rumando à mesa do desjejum matinal em busca do café preto com adoçante, das fatias de frutas e da fatia de pão light com uma fina camada de manteiga de côco. Não é possível convivermos com uma balança que não nos oferece as informações de que gostaríamos para adular nossa autoestima e disfarçar o resultado pífio de nossos pretensos esforços.
Precisamos de uma balança cúmplice de nosso processo de autoilusão sacrificial de gorduras, colesteróis, fritanças, glútens, sachês de atum e salmão (no caso do gato, que fique claro) e insaciável sedentarismo. Queremos conivência. Exigimos que a realidade se molde à nossa miopia. Queremos maquiagem, ansiamos pela peneira que tape o sol e não deixe passar os seus raios de sinceridades escaldantes. Exigimos magia, o sucesso à revelia do esforço. Confiamos no poder de nossos desejos, e não na informação do ponteiro balouçante, que insiste em nos arremessar na cara e na consciência seus quilos e quilos de verdades.
Isso, ou um choque de realidade, o que permitiria a manutenção da inocente balança atual na convivência com a família. Estamos avaliando, afinal, trata-se, definitivamente, de uma questão de peso...
Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br
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