Houve um período, quando eu era professor de Literatura Brasileira na UCS, em que um grupo de alunas decidiu gravar minhas aulas, fazer a sua transcrição e me presentear com uma cópia datilografada. Belos tempos! Guardo até hoje em meu baú secreto essas cópias. Tomo a liberdade de as compartilhar, neste site “onde economia e cultura se encontram”.
Começo com a aula dada sobre o tema “Poesia brasileira da segunda metade do século XX”. E tomo a liberdade de reproduzir o texto tal como foi transcrito.
- Vamos começar o estudo da poesia da segunda metade do século XX no Brasil com a leitura do poema “O engenheiro”, de João Cabral de Melo Neto, publicado em seu livro O engenheiro (1942-1945), com poemas escritos nesse período. O livro traz a dedicatória A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo, seguida desta epígrafe:
“... machine à émouvoir...”
Le Corbusier
A epígrafe significa “máquina para comover”. E Le Corbusier foi chamado de pai da arquitetura moderna na Europa e foi quem influenciou toda a arquitetura moderna no Brasil. Ele fez o projeto do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, considerado o marco inicial da arquitetura moderna brasileira. Foi ele o mestre de Oscar Niemeyer, que todos conhecem.
Evidentemente, o poema não é uma homenagem aos engenheiros. João Cabral está, na realidade, criando uma imagem comparativa, na qual o poeta é um engenheiro.
- Lembremos algumas imagens do poeta que foram criadas ao longo da história da nossa literatura. No romantismo, por exemplo, o poeta é um “profeta”, aquele que falava pelo povo, um inspirado, uma figura quase religiosa. No parnasianismo, Olavo Bilac, no poema “Profissão de fé”, caracteriza o poeta como um “ourives”, joalheiro que escolhe metais preciosos e fabrica a joia, cuidadosamente cinzelada. No modernismo, o poeta é visto como o “demolidor” de certeza.
O movimento do modernismo é de desconstrução de toda a tradição de poetas profetas, de poetas ourives. É um movimento que põe abaixo toda a tradição literária da poesia, a sua literariedade, e, no lugar dela, colocar a força da oralidade, a contribuição da língua falada pelo povo.
Manuel Bandeira, na sua célebre declaração de princípios do poema “Poética”, do livro Libertinagem, publicado em 1930, diz:
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao senhor diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho
vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
[.......]
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
No poema “Evocação do Recife”, desse mesmo livro, em que ele relembra sua infância, Manuel Bandeira é ainda mais explicito:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo.
- Então, o modernismo da primeira metade do século é claramente um movimento de desconstrução da tradição literária da poesia escrita para reincorporar a fala cotidiana. E os poetas que mais marcaram essa fase foram exatamente os que mais conseguiram incorporar a fala do povo na poesia.
Nessa linha estão Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinicius de Morais, Mario Quintana e tantos outros. O ponto mais alto é seguramente Drummond de Andrade, que incorpora, além da fala do povo, a fala do jornal, a fala dos meios de comunicação. Também Cecília Meireles, aparentemente mantendo uma dicção clássica, também introduz o tom coloquial e uma flexibilidade maior do verso: isto é, faz também uma reincorporação da fala no verso poético. Manuel bandeira chegou a dizer que a poesia precisava introduzir “o impuro”, não só o limpo.
- E o que vemos neste livro O engenheiro, de João Cabral de Melo Neto?
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel:
o desenho, o projeto, o número;
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
É evidente no poema a imagem de como João Cabral de Melo Neto vê o poeta. Ele destaca dois elementos opostos e que se conciliam na atividade do engenheiro, e do poeta: “o sonho” e as “coisas claras”. O sonho é ponto de partida, mas ele se expressa em coisas claras. Todas as imagens a seguir são para reforçar essa ideia de claridade, de um mundo não na profundidade do subconsciente, mas de “superfícies”, que pode ser medido com “esquadro”.
Com isso, o poeta quer desenhar “o mundo justo”. Justo não no sentido de justiça como valor moral, mas no sentido de justa medida, de medida certa. O mundo com que o poeta engenheiro sonha é um mundo em que as coisas têm clareza.
Ao escrever esse poema no início de sua carreira, ele na verdade está fazendo uma profissão de fé. Estamos diante de um poeta que vê sua poesia como um projeto de construção, não uma pequena joia de ourives uma mensagem de profeta. Essa a sua poética pessoal.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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