Fernando Pessoa é conhecido como o poeta dos heterônimos – o de muitos nomes – que costumam ser atribuídos às várias personalidades que o próprio Pessoa reconhecia dentro dele: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Coelho Pacheco e... Fernando Pessoa ele mesmo.
O que poucos sabem é da existência de outra de suas personalidades: a de economista interessado em questões de comércio e indústria em Portugal e no mundo inteiro. E não era um interesse eventual: Fernando Pessoa fundou e dirigiu, com seu cunhado, uma revista mensal, com o nome de Revista de Commercio e Contabilidade. Nela publicou artigos e comentários diversos, alguns de caráter rigorosamente teórico e científico, outros de análise de situações e fatos que chamavam sua atenção de economista.
O curioso é que fiquei sabendo desta faceta do autor por intermédio de um estudioso italiano, Brunello de Cusatis, que traduziu e editou na Itália uma coletânea de artigos publicados na Revista de Commercio, de 1926 em diante. Se alguém pensa que são textos de um poeta fingindo que entende de comércio internacional, vai se surpreender. Verdade que é dele o verso de que “o poeta é um fingidor”, mas não parece que a fórmula se aplique ao caso.
Só para dar uma amostra, ponho aqui o tema de alguns de seus ensaios:
a cotação da moeda;
a organização de arquivos;
a inutilidade dos conselhos fiscais;
a necessidade de organizar as organizações;
a concentração industrial;
os preceitos de Henry Ford;
o papel da publicidade.
E por aí afora. Todos eram assuntos da atualidade econômica de seu tempo. Para quem tinha construído (e não me excluo dessa categoria) a figura imaginária de um poeta exclusivamente dedicado aos versos, como se não tivesse tido uma vida real no mundo concreto, é uma bela revelação.
O poeta Fernando Pessoa, na caricatura clássica de Almada Negreiros
Um dos seus ensaios mais interessantes se dedica à análise e à proposição de alternativas para “a indústria editorial e o comércio de livros”, para aplicação em Portugal e no Brasil. Inicia dizendo que, de um e de outro lado do Atlântico, os editores não se deram conta de quem são os seus leitores: pessoas que leem pouco e fogem de pegar em mãos um livro mais volumoso.
No entanto, parecem escolher de propósito editar livros enormes e de leitura pesada. Como terão poucos leitores, os preços terão de ser elevados, o que impede de atrair novos leitores. É preciso publicar livros mais baratos, em tiragens maiores. E Fernando Pessoa não fica na teoria: desenvolve todo um cálculo contábil sobre os lucros possíveis dentro dessa nova concepção industrial e comercial.
Num outro breve comentário, sob o título de “A essência do comércio”, ele se diverte com o episódio de a indústria alemã ter desbancado, na Índia, os fabricantes ingleses no mercado de suportes para comer ovos quentes.
Os alemães entraram vendendo os suportes pelo mesmo preço praticado pelos ingleses, que não desconfiaram de nada. Em pouco tempo, o comércio só vendia o produto alemão. Onde estava o mistério? Os ovos das galinhas indianas eram maiores que os das galinhas inglesas. Os alemães simplesmente fizeram o suporte um pouco maior e ganharam o mercado. Isso, conclui Pessoa com certa solenidade, “em linguagem científica, se chama adaptação ao ambiente”.
Um poeta, portanto, bem ajustado a uma publicação como esta, “onde economia e cultura se encontram”!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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