Caxias do Sul 23/11/2024

O poder da incerteza

Como dizia Marquês de Maricá, “os homens preferem geralmente o engano, que os tranquiliza, à incerteza, que os incomoda”
Produzido por Gustavo Miotti, 30/04/2020 às 08:29:44
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Um dos maiores desafios que a Covid-19 está ocasionando para o mundo é o aumento dramático no grau de incerteza, em praticamente todas as esferas da civilização mundial. A saúde pública, educação, política, economia e relações internacionais foram postas em xeque, pela rápida disseminação da pandemia.

Em toda a trajetória da Covid-19, desde a contaminação, spread e cura da doença existem dramáticas dúvidas. Insegurança, quanto a possíveis vias de contaminação, bem como a sua fisiopatologia (funcionamento do vírus), sua real letalidade e seu poder de mutação.

Também não são claras as possíveis opções de tratamento e cura e o efeito protetivo dos anticorpos. E, para piorar, há dúvidas quanto ao tempo que levará para termos a vacina disponível e acessível a todos, se é que a teremos algum dia.

Também temos incertezas de como o mundo irá funcionar. O que irá mudar, o que continuará igual? Quais serão as consequências econômicas, políticas e sociais?

A dúvida filosófica de que se o mundo se tornará mais solidário ou intensificar-se-ão os conflitos após esta experiência! Teremos uma volta ao normal ou um mundo mais protegido e com medo? A continuidade dessa incerteza também leva a estressarmos nossas dúvidas existenciais: significado, propósito e valor da vida.

Do ponto de vista econômico, a incerteza afeta o apetite dos agentes econômicos (sim, nós economistas usamos termos estéreis, próprios ao momento) das empresas de contratar e investir, e consumidores de gastar: a estratégia do “espere para ver”! Além disso, a incerteza tem uma relação direta com o risco, aumentando o custo de capital (juros) para empresas e consumidores.

Os economistas Nicholas Bloom, da Universidade de Chicago, e Steve Davis, de Stanford, há alguns anos vêm desenvolvendo uma metodologia para medir o grau de incerteza mundial; isso é fundamental para que os bancos centrais e governos operem com políticas contra cíclicas para estabilizar a economia. Este índice é monitorado, invariavelmente, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e principais agências econômicas.

Obviamente, eventos negativos, como a Covid-19, elevam dramaticamente o índice por termos uma terrível combinação de choque de oferta (indústria e comércio quase parados) e de demanda (pessoas consumindo menos, exceto alimentos e com mérito à distinção do papel higiênico).

Pela natureza da minha formação, não poderia deixar de colocar o gráfico abaixo, que demonstra a perspectiva histórica do grave momento atual. Antes mesmo da pandemia, a década atual tem apresentado níveis incomparáveis de incerteza superando episódios históricos, como o 11 de Setembro e a Grande Recessão.

Em boa parte, isso é explicado pelo grau de interconexão e dependência das economias, ou de forma mais clara: globalização. E reforçada pelas ações de nossos líderes em relação a este processo, entre as principais as guerras comerciais e ações populistas.

Fonte : World Uncertain Index, Stanford mimeo.

Um fator importante que os criadores do índice encontraram, ao comparar sua evolução entre diferentes países, é de que o estado de direito e o grau de maturidade das instituições de um país moderam (aumentam ou diminuem) fortemente o nível de risco. Por isso, instabilidade política, como a vivida no Brasil nas últimas semanas, afetaram fortemente a taxa de câmbio e a bolsa de valores.

Também os autores encontraram uma relação entre incerteza e democracia, quando países evoluem de uma autocracia (sistema de governo por uma única pessoa com absoluto poder) ou anocracia (regime que mistura democracia e autoritarismo) para uma democracia, a incerteza cresce. E quando a democracia evolui para uma democracia estabelecida, a incerteza declina fortemente.

Além da estabilidade política, existem outras formas específicas de reduzir o grau de incerteza causado pela Covid-19, como termos mais dados confiáveis quanto ao número de pessoas sendo testadas, uma previsão realista de número de testes para as próximas semanas e também a efetividade das medidas de lockdown. Por último, mas mais importante: as condições do sistema de saúde, fundamental para se saber qual o número de leitos em UTI´s estão disponíveis e suas tendências de ocupação com outras doenças; os equipamentos hospitalares e materiais essenciais, com estoque adequado e o grau de infecção dos médicos e enfermeiros.

A Covid-19 originou um mundo de indecisão, hesitação e imprecisão, que desafia nossos líderes a tomarem as decisões corretas. Somente com muita sabedoria, serenidade e colaboração mundial poderemos mitigar os efeitos desta pandemia. A nossa única certeza é que de tédio, definitivamente, não corremos o risco de morrer.

“Salvo se formos cretinos, morreremos sempre na incerteza do nosso próprio valor e do da nossa obra”, dizia Gustave Flaubert, escritor francês.

Gustavo Miotti, economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.

e-mail: gmiotti@rollins.edu

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