Por José Clemente Pozenato
Tomei conhecimento da história, intitulada “Cândido ou o Otimismo”, de Voltaire, lendo Machado de Assis. Tanto nas Memórias Póstumas de Braz Cubas quanto no Quincas Borba, sem falar nas suas crônicas, Machado sempre citou esse texto para fazer ironia sobre o otimismo defendido pelo Doutor Pangloss, para quem “vivemos a melhor das vidas no melhor dos mundos”.
De Machado de Assis fui ao original de Voltaire. A trajetória percorrida pelo personagem Cândido (o nome escolhido por Voltaire não é casual), dando de frente com problemas em toda parte, permite a ele, e ao leitor, testar o otimismo do Dr. Pangloss.
Cândido enfrentou uma sequência de peripécias ao redor do mundo. No primeiro capítulo, é expulso a pontapés de um castelo na Vestfália. No segundo, leva uma surra de um grandalhão na Bulgária. Foge da Bulgária e toma um navio para Lisboa. E o que acontece em Lisboa?
“Mal chegaram à cidade, sentiram que sob seus pés a terra tremia; o mar, encapelado, avançava no porto, destroçando os navios ancorados. Chamas e cinzas cobriam ruas e praças; as casas desmoronavam, os telhados desabavam sobre os alicerces e os alicerces desmanchavam; trinta mil habitantes de ambos os sexos e de todas as idades foram esmagados sob os escombros”.
Era o famoso Terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755. Na realidade foi um maremoto, que hoje seria chamado de tsunami. O Marquês de Pombal ficaria famoso depois dele, por ter planejado e executado a reconstrução da cidade. Também Cândido achou que o terremoto fora uma coisa ótima: dava chance de se fazerem casas novas e de limpar as ruas...
Depois disso, na Espanha, Cândido mata sem querer um bispo e tem de fugir para a Santa Inquisição não o condenar à fogueira. Anda trinta milhas a cavalo e embarca num navio para a América Espanhola. O mundo continuava maravilhoso: ele conseguira fugir!
Atravessa o oceano e vai dar no Paraguai, onde enfrenta problemas nas missões dos jesuítas. Passa pelo Peru, que os espanhóis chamavam de Eldorado, e ali consegue juntar pedras preciosas e criar carneiros. Perde depois tudo, é claro. Vai até o Suriname, onde encontra holandeses, e chega finalmente a Caiena, na Guiana Francesa. Embarca então para a França e desce em Bordeaux, que os portugueses chamam de Bordéus.
De Bordeaux, ou Bordéus, como nas tabernas todos falavam de Paris, é para lá que Cândido se dirige. Mas antes o navio passa por Veneza e pela Inglaterra, para o circuito ficar completo. Ou quase! Em Paris termina a viagem pelas maravilhas, e pelos horrores, do mundo. Lá reencontra o doutor Pangloss, que o conforta com estas palavras:
“Tudo o que acontece se encaixa no melhor dos mundos possíveis: se não tivesses sido expulso do castelo a pontapés, se não tivesses ido parar no tribunal da Inquisição, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses perdido teus carneiros no Eldorado... não estarias agora comendo biscoitos de pistache em Paris!”.
E conclui: “Quando puseram o homem no jardim do Éden, foi para que ele trabalhasse; isso prova que o homem não nasceu para o repouso”. Cândido então arremata: “Muito bem, vamos cuidar de nosso jardim”.
Certamente esta seria a filosofia do doutor Pangloss para os dias que estamos vivendo. E Voltaire, certamente, faria humor com ela...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar.
e-mail: pozenato@terra.com.br
Do mesmo autor, leia também: