POR MARCOS FERNANDO KIRST
Considero que me transformei oficialmente em um leitor de livros aos 10 anos de idade, quando o fascínio pela leitura já havia sedimentado em meu espírito o germe do vício sem que eu deliberadamente o tivesse provocado.
Fui vítima passiva do ataque da doença leitural, contagiado pelo ambiente em que vivia, moldado por paredes de livros instaladas no quarto de dormir e na sala de estar de casa e nos ambientes das residências dos avós; pelo contato com os familiares-leitores, que não eram poucos; pelo convite ao mergulho no mundo do ler proporcionado pelos pais; pelo acesso irrestrito ao contato com o objeto livro e com o ato encantado de ler desde os primeiros momentos de minha existência. Sucumbi por completo e, quando me dei por conta, era leitor.
Dei-me por conta, então, no início de 1977 - ano em cujo transcurso eu alcançaria a idade dos 11 anos -, de que era um militante do ler durante um veraneio em praias catarinenses ao transportar entre meus pertences primordiais, junto ao calção de banho e ao bronzeador (usava-se essas coisas em uma época em que o sol ainda não fazia os estragos epidérmicos causados pela destruição que viemos promovendo na biosfera desde que passamos a estuprar o planeta), dois livros para ler ao sol e em meio à areia naqueles dias: “Robin Hood”, de Sir Walter Scott, em edição ensebada resgatada da infância de meu pai, e “O Picapau Amarelo”, de Monteiro Lobato, presente de Natal de minha mãe.
O fascínio obtido por meio do ato de ter a imaginação excitada a partir do mergulho nas linhas impressas naqueles dois volumes arrebatou-me de maneira impossível de ser descrita com precisão hoje, passadas décadas. Sucumbi ao vício e passei a desejar repetir a experiência outra vez e outra vez mais, compulsivamente, até o dia em que escrevo estas memórias, resignadamente ciente de que dele jamais serei curado – para meu imensurável deleite e gáudio.
Foi imerso nos mistérios das floresta de Sherwood e nos encantamentos das matas de Lobato que devo ter lembrado naquele momento que, três verões antes, havia eu estado naquela mesma praia com meus pais, recém-alfabetizado, e pedido, para espanto ou talvez para a satisfação deles, por iniciativa própria, que me comprassem na banca de revistas um volume misto entre história em quadrinhos e livro narrando uma aventura da cadela Lassie, cujas peripécias eu acompanhava em um seriado nas sessões da tarde em nossa televisão Telefunken a válvula, em preto-e-branco, na volta do colégio. A relíquia “Lassie e o Dinheiro Falso” é considerada por mim, hoje, como o primeiríssimo livro que li na vida, guardado sempre perto na estante ao qual lanço o olhar enquanto estas linhas aqui mal-teclo, lembrando que colori com lápis de cor a maioria das ilustrações ali contidas. E quis, aos 10 anos, já então movido por nostalgias, registrar aquela leitura feita três anos atrás, em um passado que, naquele momento, representava cerca de um terço de minha existência.
"Lassie", o primeiro livro lançado no memorial
E o modelo para fazê-lo veio, outra vez mais, de minha mãe que, na época, mantinha o que passamos depois a chamar de “Livro dos Livros”, que consistia em um volume encadernado em capa dura, adquirido em papelarias, pautado e repleto de páginas e linhas em branco para servir aos infinitos propósitos da escrita, no qual ela passara a lançar resenhas dos livros que ia lendo durante o ano. Achei a ideia genial e tomei a decisão de imitá-la. Ganhei, para tanto, um “Memorial Globo 1976”, que não passava de uma enorme agenda anual produzida pela porto-alegrense Editora do Globo, que havia sobrado incólume e sem uso, na qual passei a anotar todos os livros que lia.
Comecei no início de 1977, aos 10 anos de idade, e não parei mais. Nunca mais. Ano a ano, livro após livro, venho lançando-os todos ali, absolutamente todos, com resenhas e nome de autor, um a um, os livros que li e que sigo lendo no transcurso de minha existência, no meu Livro dos Livros, no Memorial Globo 1976 de capa marrom que até hoje guardo comigo. Lá estão, obedecendo à evolução dos meus interesses e acompanhando o transformar de minhas compreensões e estilos de escrita, os livros todos que vêm formatando meu perfil de amante da literatura, um a um, um após outro, absolutamente todas as obras que fizeram companhia aos dias de minha vida.
O "Livro dos Livros", ensebado e ativo há décadas
Tão saboroso quanto os atos de concluir uma leitura ou iniciar um novo livro, é para mim o ritual de pegar o Livro dos Livros para lançar em suas páginas que ainda restam em branco a resenha de uma obra com leitura recém-concluída. Aguardo um momento em que possa estar só, em algum local da casa, sobre a mesa do jantar ou, em tempos adolescentes, sobre a própria cama no quarto, e abro sua capa dura, municiado de caneta e régua, para preencher algumas linhas com o título da obra, seu autor e as impressões que de sua leitura me ficaram naquele instante em que o habilito para ocupar um lugar só seu reservado à estante dos livros já percorridos por meus olhos e alma leitora. É um ritual de despedida do livro lido, ao mesmo tempo em que é também um rito de admissão da obra à casta daquelas por mim já visitadas. Solene instante, que se renova a cada fechar de volume.
Uma página com as resenhas das obras lidas
Meu Livro dos Livros encerra uma biblioteca em si mesmo, e faz as vezes de um diário por tabela, uma vez que recordo nítida e claramente o momento de vida e os locais em que estava quando da leitura de cada obra ali lançada. De minha existência física, tenho certeza de que será o único objeto que lastimarei não levar comigo para o que quer que exista depois de se fechar a última página da história daquilo que fui.
Marcos Fernando Kirst é jornalista e editor do portal www.silvanatoazza.com.br
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