Saiu um livro contando detalhes de como foi apagado o incêndio da catedral de Notre-Dame, em Paris, tragédia acontecida a 15 de abril de 2019. O relato é feito pelos bombeiros que atuaram no salvamento, “em cumplicidade” com o repórter Romain Gubert, da revista semanal Le Point. O título original é La Nuit de Notre-Dame – par ceux qui l’ont sauvée (A noite de Notre-Dame – por aqueles que a salvaram). Publicado pela Editora Grasset, e custa 18 euros.
O texto em francês não é muito fácil de ser lido, porque utiliza uma linguagem de cunho mais próximo do coloquial, incluindo o jargão típico dos bombeiros, o que não é meu campo comum de leitura. Bem ao revés, fui elogiado na França, por um professor universitário, por falar um francês bem literário. Isto é, erudito... Mas, apesar das dificuldades de trajeto, trata-se de uma obra impressionante.
Só o relato da experiência individual dos bombeiros – e bombeiras, porque há também mulheres no destacamento – já fornece um amplo aprendizado. Não resisto a dar uma amostra da página inicial, por mim traduzida:
‘Nessa manhã, o chefe-adjunto Jérôme já sabe que seu começo de semana será sobrecarregado. Dentro de alguns dias, ele, que dirige há três anos o quartel do Quartier Latin e seus cinquenta bombeiros, entrará em férias. Uma longa “licença”, diferente das outras. Com a esposa, uma enfermeira encontrada nos corredores de urgência do hospital de Kremlin-Bicerre enquanto ele depositava a vítima de um acidente de trânsito, vão finalmente realizar um velho projeto: voar para Nova Iorque com amigos de sua região natal, Franche-Comté.
Dentro de dois dias, terá de levar seus três filhos aos avós perto de Besançon, antes de atravessar o Atlântico pela primeira vez. Como sempre, quando se ausenta do quartel deve pôr tudo em ordem para deixar o lugar limpo para seu substituto. Há, portanto, mil coisas a fazer antes de subir no avião.’
O primeiro aspecto surpreendente da história é que Jerôme, esse chefe dos bombeiros, ficou sabendo do incêndio da Notre-Dame por uma mensagem enviada por celular de um bombeiro do destacamento que estava passando férias na Itália: um vizinho dele lhe passara a informação de que estava subindo fumaça na catedral. A partir daí é que Jerôme movimentou o corpo de bombeiros para apurar o que estava acontecendo: podia ser fogo na igreja, mas podia também ser em algum depósito de lixo, ou uma trampolinagem...
Outra surpresa está no relato feito pelo bombeiro Gallet. Ele conta que, enquanto ia de carro na direção da “imensa ferida negra que espedaçava o céu”, ia se lembrando dos grandes incêndios em que havia atuado. Como em 1996, numa agência bancária do Crédit Lyonnais, que mobilizou seiscentos bombeiros durante vinte horas. E também de outros incêndios que ficaram na história. Entre eles, os dois mais marcantes.
O primeiro havia acontecido em 1972, na catedral São Pedro e São Paulo, de Nantes. Um operário havia esquecido um maçarico ligado, o que acabou pondo abaixo o telhado do edifício, que datava do século XV.
O outro caso que lhe veio à lembrança foi o de ter lido uma reportagem com depoimentos dos bombeiros brasileiros que, seis meses antes, enfrentaram um fogo destruidor que durou seis horas, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, uma construção de 1818.
Quem se concentra no seu oficio, não deixa escapar nada!
E nesse tom o livro vai contando o que fez cada bombeiro até ser totalmente apagado o incêndio da Notre-Dame. Um deles sorri para a estátua da Virgem com o Menino, depois de a ter salvo. Outro constata, ao subir até o alto das escadas da torre, que o órgão e as rosáceas ficaram intatos.
Para terminar, mais um episódio curioso. O bombeiro Emmanuel, de volta ao quartel às três horas da manhã, ao retirar uma bota, percebe nela um furo. Um prego do tamanho de um dedo, feito na Idade Média, tinha se enfiado nela. Emmanuel não titubeou: guardou o prego “com seus objetos pessoais mais preciosos”. Um prego para ficar na memória!
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
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