Aí tinha um homem lá que a cachorrada sempre atacava ele. Não podia pisar fora de casa que já vinha um jaguara acoando. Ah, esse não faz nada, diziam as pessoas: mas o bichinho mais fofinho se enfuriava quando que via o Cenor. O que teve de cachorro manso virando o demonho na frente desse homem não é brincadeira.
Aí diz ele: tem um encosto. Tem um espírito possuído ne mim, só pode. Que a vacina da raiva ele tomava vamos dizer hoje e, amanhã, já tinha que ir lá tomar outra. A guria do postinho, quando que ela via o Cenor dobrando a esquina ela já: lá vem o homem que a cachorrada gosta. E dê-lhe preparar injeção, água oxigenada, sangue limpo, o escambau. Diz ela: mas assim você me leva à falência o postinho. Foi ela que indicou o benzedeiro, daí.
Chega o Cenor mancando lá com uma mordida e o homem só olha assim e diz bem assim: boa noite. O Cenor já ficou ressabiado, que era de manhãzinho. Boa noite é como se cumprimenta bugre, diz o homem. A árvore, no causo. Que se tu passa perto tem que dizer bom dia, se é de noite, e boa noite se é de dia.
O bruxo daí ele meio que viu que no Cenor tinha alguma coisa que dá coceira. Cachorro te avança?, diz ele. É que tu é cobra. Quedêle tua mulher?, diz o homem. E o Cenor: me largou. Aí parece que o homem lá só riu e ficou com pena, que ele viu na visão dele a mulher do Cenor toda cheia de vergão, uma coceira de colchão de palha, que nem. Cobra dá cobreiro, diz o homem. O cão te acoa, o sapo te escapa. Já viu cobra?, diz o bruxo.
Aí o Cenor pensou, pensou. Quando que eu era pequeno, lá pra fora, diz ele, apareceu uma cobra coral na volta lá de casa. E diz que o Cenorzinho ele ficou lá brincando com ela: uma minhoca colorida, diz ele. E a cobra nada de atacar. Veio a mãe, garrou o Cenor pelo cangote e a cobra ali, bem bela, só olhando a cena. Decerto ela me reconheceu que eu sou cobra, diz o Cenor.
Daí ele ficou com aquilo de sou cobra, gostou. Chegou no serviço dia seguinte olhando meio assim de revesgueio: eu sou cobra, diz ele. Arrumou um par de bota de couro de cobra que o sapateiro lá do bairro, né. Daí, quando que via um cachorro, o Cenor já se armava pro bote. Pode vim!, diz ele, e funcionava.
Só não dava muito certo com a mulherada, que ele chegava no baile lá com aquelas botas de jararaca, mostrava a língua assim e as guria não perdoavam: sai pra lá, jaguara!, diz elas. Que o Cenor ele no fundo era cachorro mesmo.
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.
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