Caxias do Sul 23/11/2024

'O homem invisível' em roupagem inovadora

Elisabeth Moss reafirma sua competência dramática em filme sobre amor doentio
Produzido por Eulália Isabel Coelho, 10/05/2020 às 08:32:38
Foto: LUIZ CARLOS ERBES

POR EULÁLIA ISABEL COELHO

Quanto uma mulher pode suportar ao ser atormentada psicologicamente? Devassada em seu íntimo e até mesmo em seus pensamentos? Cecilia Kass, ou simplesmente Cees (Elisabeth Moss), não suportando mais a violência doméstica, planeja sua fuga. Quando a vemos, ela está agindo, com movimentos cuidadosos, na ponta dos pés, buscando sua liberdade. É desse modo que nos é apresentada a protagonista de “O homem invisível” (2020).

Imediatamente ficamos ao seu lado. Por compaixão, por saber que essa realidade, essa violência silenciosa está muito perto de nós. Na casa ao lado, na nossa própria família, na história de alguma amiga...

Essa não é, como se vê, uma adaptação literal do famoso livro de H. G. Wells (1866-1946), escrito em 1897, mas utiliza a sua matriz: um homem invisível e perverso. A primeira versão cinematográfica, de 1933, dirigida por James Whale, mantinha o teor original, trabalhando com o suspense e incorporando um viés de angústia existencial ao personagem-título.

No ano 2000, Paul Verhoeven fez a sua releitura em “O homem sem sombra”, com ação e efeitos especiais notáveis. Kevin Bacon, cientista de um laboratório ultrassecreto, descobre a fórmula da invisibilidade e resolve testá-la em si mesmo. Enfim, o mote se repete sempre com protagonismo masculino.

Suspense é ingrediente bem dosado no filme

O diretor e roteirista Leigh Whannell (“Jogos Mortais”, 2004) inova ao colocar uma mulher como personagem principal. Ao focar sua câmera em Cecilia, faz um breve estudo sobre relações abusivas e os traumas que dela resultam. A anulação da personalidade de quem passa por essa experiência é um deles. Refletimos sobre o amor doentio e nocivo, enquanto observamos os inúmeros closes na personagem Cees. Elisabeth Moss, sempre sensível em suas atuações, dá a Cecilia a vulnerabilidade necessária, mas também a coragem para que viva sua jornada da heroína.

A atriz ilumina a tela, como o faz em “The Handmaid's Tale”, série sobre um futuro distópico, adaptação do livro homônimo de Margaret Atwood, escrito em 1985. Sua personagem, a aia Offred, resiste ao destino que lhe é imposto. O Estado fundamentalista, dominado por homens em Gilead, anula completamente a identidade feminina. Ao vermos Elisabeth Moss como Cecilia, percebemos o mesmo caráter e determinação de Offred. Em “O homem invisível”, sua caminhada exigirá decisões rápidas, impulsionadas pela necessidade visceral de vencer seu algoz.

Cecília (Elisabeth Moss) decide fugir de seu algoz

“Ele controlava minha aparência e o que eu vestia. E depois controlava quando eu saía de casa e até o que eu pensava”, conta Cecilia. É desnecessário mostrar cenas de violência em flashback, pois vemos o doloroso drama na expressão facial da personagem. “Ele disse que aonde quer que eu fosse, ele viria até mim e eu não iria vê-lo”.

O homem invisível” se arrisca ao revelar que não é sobrenatural o que persegue a protagonista. Sem clichês como porões escuros e ruídos estranhos, além de poucos jumpscares (aqueles sustinhos que nos fazem pular da cadeira), o filme perpassa o suspense psicológico. Evita o caminho do thriller investigativo ainda que Cecilia seja acolhida por um policial. Cabe a ela lidar com Adrian. Ele que a invisibilizou por tanto tempo e que insiste em subjugá-la. Dessa vez, ela não se renderá facilmente, sabe que se o fizer, será vítima para sempre.

Protagonista vive drama insólito

A fotografia com suas cores frias aponta para o desamparo da personagem. A trilha sonora de Benjamin Wallfisch, o mesmo de “It - Capítulo 2” e “Hellboy”, joga com essa impotência ao mesmo tempo em que pontua vigorosamente os momentos de suspense. Leigh Whannell, por sua vez, traduz seu argumento inovador com estrutura dramática envolvente. O contexto contemporâneo é escolha acertada por colocar a personagem mais próxima do espectador. O tema complexo tem abordagem metafórica, sem dúvida uma de suas qualidades.

Assista aqui ao trailer oficial de O HOMEM INVISÍVEL

DE OLHO NO SET

Leigh Whannell, que também é ator, dirigiu “Sobrenatural, a origem (2015) e “Upgrade: atualização” (2018).

“Memórias de um homem invisível” (1992) de John Carpenter é adaptação do romance de H. F. Saint que, por sua vez, se inspirou na obra de H. G. Wells.

Wells é autor de “A máquina do tempo” (1895), “A ilha do Doutor Moureau” (1896) e “Guerra dos mundos” (1898), todos levados às telas.

O autor de “O homem invisível” era um pacifista e escreveu artigos sobre os direitos das mulheres no início do século XX.

“Dormindo com o inimigo” (1991), “O piano” (1993) e o brasileiro “Um céu de estrelas” (1993), de Tata Amaral, são alguns filmes com abordagem temática semelhante.

Em 25 de novembro de 2019, Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher, o coletivo chileno Las Tesis criou a performance artística “Un violador en tu camino”. “É feminicídio/ Impunidade para meu assassino/ É o desaparecimento/ É o estupro”, dizem os versos.

Eulália Isabel Coelho é jornalista, professora e escritora

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