Todo mundo conhece o gato Mefistófeles das histórias em quadrinhos da Disney. O que muita gente não sabe é por que ele foi parar lá e de onde veio esse nome mefistofélico... Pois eu sei disso desde que comprei numa livraria do Rio de Janeiro, em 1965, o Fausto de Goethe, na tradução de Antenor Nascentes – mestre de todos os doutores em Letras – em parceria com José Júlio F.de Souza. Eles contam no prefácio o motivo:
“Os tradutores desta obra, para não esquecerem o alemão que aprenderam, resolveram reservar um dia na semana para ler e traduzir obras interessantes escritas em alemão. Começaram por uma antologia e, finalmente, (que temeridade!) enfrentaram o Fausto de Goethe”.
E prosseguem com o relato do seu trabalho de tradutores:
“Liam de cada vez uns dez a quinze versos (obs: Goethe escreveu o Fausto em versos). Discutiam a interpretação e, só depois de estarem de acordo, escreviam-na. Liam comentadores, obras sobre o léxico goethiano, tudo enfim que pudesse trazer subsídios valiosos. Em certos trechos difíceis, repararam que muitas vezes os tradutores não concordavam entre si nem os tradutores com eles...”
Pronta a tradução, e feita duas vezes a revisão, ninguém menos que Augusto Meyer, poeta gaúcho de renome, saiu à procura de editor. A Editora Letras e Artes, do Rio de Janeiro, com sede na avenida Presidente Vargas, teve a coragem de assumir a publicação. Foi lá que adquiri meu exemplar.
E quem era Mefistófeles na peça de Goethe?
Em resumo, Fausto é uma tragédia em tom fantasmagórico, recheada de bons e maus espíritos, anjos e demônios, bruxas e feiticeiras, estudantes e camponeses. Fausto é um professor insatisfeito com sua ignorância: “Tenho estudado até agora Filosofia, Jurisprudência, Medicina e por desgraça também Teologia: pobre louco, continuo na mesma!”
Quando ele invoca algum espírito poderoso para o auxiliar a ser mais sábio, aparece em meio à névoa alguém vestido como estudante. O diálogo entre os dois, quando Fausto lhe pergunta o nome, é um dos momentos mais engraçados da peça, toda ela cheia de peripécias, sem a menor linearidade narrativa. Ao longo da conversa, o nome de Mefistófeles é revelado. Os dois fazem então um pacto, em que Fausto entrega a alma a Mefistófeles e, em troca, recebe a sabedoria. Depois, um novo item é acrescido ao pacto: Mefistófeles ajudará Fausto a conquistar a bela Margarida, a Gretchen das fábulas.
Inúmeros ensaios de ecdótica têm pesquisado a origem desse nome. É consenso que Goethe foi buscá-lo no acervo das narrativas populares medievais do mundo germânico. O mesmo onde os Irmãos Grimm foram buscar os personagens e as histórias dos contos que escreveram e são lidos no mundo inteiro. Foi nesse repertório que a Disney foi buscar material para sua indústria do entretenimento, por meio do cinema e das histórias em quadrinhos.
E qual a ligação do gato Mefistófeles da Disney com o Mefistófeles de Goethe? A pista é a seguinte: quando Fausto vê Margarida numa janela e pede a ajuda de Mefistófeles para conquistá-la, este responde:
“Eu sou como um gato franzino que sobe pela escada, e depois se esfrega suavemente junto às paredes”.
Enquanto os dois pactuam a sedução de Margarida, aparece o irmão dela, Valentim, que esbraveja: “Maldito caçador de ratos! Vá para o diabo!”
Mefistófeles, o gato de estimação da Madame Min, da Disney
Para terminar, também tenho uma historinha. Quando comecei a trabalhar como professor na universidade, ganhei de presente um gato, já com o nome de Mefistófeles. Nos dávamos bem, mas como eu passava o dia fora de casa, trabalhando, e algumas noites também, ele ficava sozinho.
Numa noite dessas, voltando da universidade, quando abri a porta, Mefistófeles passou pelo vão e sumiu no escuro da rua. Procurei durante dias pela redondeza, mas nunca mais o encontrei. Porém, cada vez que vejo um gato na rua, ou no parque, suspeito que seja ele, o Mefistófeles! Mas não chegamos a fazer nenhum pacto...
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado "O Quatrilho", que foi adaptado ao cinema, concorrendo ao Oscar
pozenato@terra.com.br
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