Imagine uma cidade que passou por seu pior momento há menos de 10 anos. Em 2013, decretou falência do município e sofreu uma intervenção estadual em suas contas.
Neste mesmo ano foi eleito um novo prefeito, Mike Duggan, com o desafio de reestruturar a cidade, que vinha sofrendo com crises desde os anos 50. E este prefeito estava obtendo sucesso, tanto que foi reeleito em 2017 com 72% dos votos.
A cidade de Detroit conta atualmente com aproximadamente 650 mil habitantes, mas já teve quase 2 milhões de habitantes nos anos 50. Uma série de crises e problemas locais e globais contribuiu com o decréscimo de sua população e das receitas do município, o que levou à sua falência em 2013.
A cidade já passou, desde a sua fundação, por muitos momentos delicados. A primeira crise foi nos anos 1700, no período de sua fundação, quando as peles de castor foram trocadas pela seda no mercado de moda europeu, abalando significativamente a economia local que era baseada na caça e comercialização de peles de animais.
Nos anos de 1950 a 1970, a indústria automobilística sofreu com as mudanças no mercado automotivo, em função de um novo cenário influenciado pela crise do petróleo, tendo como consequência a expansão das grandes empresas pelo mundo na busca de menores custos de fabricação e logística.
A crise do petróleo foi uma ameaça que os japoneses souberam aproveitar como oportunidade, introduzindo veículos menores e mais econômicos. E essa situação toda foi ainda abalada por questões internas, muito impactantes na história da cidade, como as rebeliões de 1943 e, a maior delas, em 1967, motivada por questões raciais de busca por igualdade de oportunidades para todos, que acabou inspirando movimentos de direitos humanos por todo o país.
Esta história serve para contextualizar uma cidade que está passando por mais uma grande crise em um momento em que estava se recuperando. Há cinco anos, a cidade havia saído da situação de falência e vinha buscando investimentos, qualificando a sua estrutura e tentando reverter a evasão de cidadãos, que persiste.
Esta crise da Covid-19 abala de forma muito dura a cidade de Detroit novamente, impactando diretamente em todas as áreas. Mas o prefeito busca motivação em uma frase em que afirma que “uma das grandes características da cidade é a união de seu povo”.
A cidade chegou a ter 377 novos casos de Covid-19 no dia três de abril. Registrou pico de mortes diárias no dia nove de abril, com 54 mortes, e acumula até hoje (6/5) 9.592 casos e 1.149 mortes.
O enfrentamento foi levado muito a sério por toda a comunidade, obedecendo às ordens da governadora do estado solicitando que a população ficasse em casa, o que é seguido muito disciplinadamente e, claro, contando sempre com a vigilância local dos vizinhos e da polícia.
Um dos pilares para proporcionar esse controle foi o investimento massivo em testes. Já foram realizados na cidade 20.272 testes até as 16h do dia sete de maio, sendo possível identificar por CEP a localização das pessoas infectadas e elaborar ações para mitigar os casos pontualmente.
A prefeitura tem atuado proativamente durante esse período, com o prefeito fazendo relatos pessoalmente todos os dias no mesmo horário sobre as ações realizadas e os próximos passos a serem tomados. A comunicação é feita em formato de coletivas de imprensa de aproximadamente uma hora. Essa ação segue os princípios adotados pelo prefeito de TRANSPARÊNCIA E DADOS.
Dessa forma, é possível apresentar algumas ações que impactaram na comunidade e que talvez tenham colaborado decisivamente para ela ser considerada a cidade que mais rápido tomou ações e conseguiu efetivamente achatar a curva de contaminação. Detroit é reconhecida nacionalmente pelos pesquisadores da força-tarefa do governo federal como modelo de cidade no enfrentamento da crise.
O sistema de transporte público foi adaptado, isolando o motorista com equipamentos de proteção e não utilizando a porta da frente do ônibus. Para isso ser possível, não estão sendo cobradas passagens de ônibus desde o início da crise, e ainda são distribuídas máscaras para todos os usuários do sistema. Claro que isso é possível porque o número de usuários reduziu consideravelmente por estarem seguindo as orientações do governo de ficar em casa. Ainda para garantir a segurança dos usuários, os veículos passam por uma desinfecção no início e no final de sua linha.
Na área da educação, serão fornecidos 50.000 notebooks e acesso gratuito à internet para alunos que não têm condições. Assim, as atividades escolares ficam mantidas sem perder sua qualidade. Inclusive, uma de minhas filhas está com um computador desses em casa, para fazer suas atividades. Também na área da educação, foram mantidas as refeições que eram fornecidas para os alunos. Sim, aqui, no primeiro mundo, há muitos alunos que dependem dessa refeição para terem uma alimentação decente por dia. Dessa forma, foram distribuídas 290.609 refeições para as famílias.
E quanto à questão econômica, que muitos podem estar se perguntando, sim, ela é muito preocupante. Nesse sentido, todas as esferas de governo estão empenhadas em proporcionar alternativas para que seja possível manter o isolamento social da melhor forma possível.
No caso do governo municipal, estão sendo criados fundos de empréstimos para pequenos negócios, com menos de 50 funcionários, e faturamento inferior a U$ 1.000.000,00 anual. Estão sendo disponibilizados empréstimos de U$ 2.500,00 a U$ 10.000,00 para pagamento de folha de funcionários, aluguéis, financiamentos, serviços públicos, entre outros. O total a ser disponibilizado pelo município é de U$ 4,7 milhões.
Detalhe é que esses empréstimos, caso as empresas consigam manter o número de empregados durante a crise, podem ser totalmente perdoados, ou seja, a intenção é manter as pessoas empregadas. A lógica é de que, se essas pessoas forem demitidas, de alguma forma o governo deverá arcar com sua sobrevivência, ou por auxílios especiais ou pelo seguro desemprego.
Assim, é mais fácil lidar com uma quantidade menor de empréstimos, e essas empresas manteriam seus funcionários assistidos nesse momento crítico. Outra questão importante é que não são exigidas garantias para os empréstimos e, caso a empresa não consiga manter seus empregados, existe uma carência de seis meses e os juros são de 1% ao ano.
A grande diferença que vejo por aqui é o envolvimento de toda a comunidade, com o mesmo objetivo, e uma parceria muito forte e generalizada entre o poder público e o setor privado. Essa parceria se concretiza por meio de doações de equipamentos e testes, parcerias com bancos privados, restaurantes locais fornecendo voluntariamente alimentação para os funcionários que estão à frente do combate ao vírus nos hospitais, sendo essa uma forma de reconhecer o valor do trabalho dessas pessoas.
E claro, o engajamento da população, respeitando na sua grande maioria as decisões do governo como o uso de máscaras obrigatório em toda a cidade. Assim, Detroit está atuando para mitigar a contaminação e, possivelmente, proporcionando a volta as atividades dentro dos próximos dias, de forma gradual.
Mas o que realmente fica é o “spirit of Detroit”, que não é quantificado, não tem gráfico, não aparece nas estatísticas oficiais, é subjetivo, é o fato de pensar no bem comum, se preservando individualmente, mas pensando nos outros. Um tanto estranho para uma sociedade estigmatizada por seu individualismo, mas que estou aprendendo que se trata de um individualismo que respeita o bem comum, a coletividade, a sociedade como um todo.
E sim, é esse espírito que fará com que os “detroiters” passem por mais uma dificuldade em sua história e que, segundo o prefeito, será caso de sucesso na recuperação pós Covid-19.
Rafael de Lucena Perini já atuou como empreendedor no setor de chocolates em Caxias do Sul por 10 anos. Bolsista no Doutorado em Administração de Empresas na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e professor licenciado do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), atualmente é pesquisador visitante da Wayne State University, em Detroit. Dedica sua pesquisa a temas relacionados ao desenvolvimento nas cidades.
e-mail:perini.usa@gmail.com
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