“Deleitava-o ouvir o roçagar do vestido de seda quando ela passava junto das portas, aspirava às ocultas o perfume do seu lenço; o pente, as luvas, os anéis dela, eram para Frédéric coisas especiais, importantes como se fossem obras de arte, quase vivas, como pessoas, a todas tinha afeto, e todas faziam crescer a sua paixão”. “Quando ela descia os degraus, ele viu-lhe o pé. Calçava uns sapatinhos abertos, em pelica castanha, de reflexos dourados, com três tiras transversais que desenhavam sobre as meias uma rede dourada.”
Esse pequeno inventário foi retirado das páginas do romance “A Educação Sentimental”, de Gustave Flaubert. Eu o devorei neste feriadão de Finados, neste surreal ano de 2020, entre potes de gel, máscaras e saudades de abraços. Esse romance escrito em 1869 me surpreendeu pela atualidade dos temas – política, ideias em ebulição, homoafetividade.
Apresenta a Paris intensa dessa época, meados do século XIX, a cultura, os costumes, os comportamentos das pessoas nas diversas classes sociais. O vestuário nesse período era repleto de acessórios, brilhos e detalhes, que Flaubert tão bem descreve. As indumentárias dos personagens dessa narração me permitiram imaginar e refletir sobre – a moda - porém, como ela se apresenta atualmente.
Minha paixão por moda não é avassaladora, porém, confesso a paixão por revistas de moda. Guardo ainda em mim o encanto que tive aos dezenove anos pela revista Capricho. Mais tarde, outras me encantaram. Hoje, aprecio muito a revista Vogue – tê-la em minhas mãos, folheá-la, ler os artigos sobre livros, arte, tendências na moda e outros temas atuais é um prazer enorme.
Mas como assim? A temática da Moda não seria algo fútil, em tempos pandêmicos?
Ageless - mulheres sem idade - de 40 e mais ...
Bem, nós, mulheres, temos uma convicção: nutrimos um sério relacionamento entre nosso corpo e o que vestimos. Verdade. Na nossa singularidade, o charme no vestir se manifesta quando nos damos a liberdade para termos nosso próprio estilo – aquele que demonstra nossa essência, ou um estado de espírito. Sim, moda não é futilidade, moda é coisa séria. Revela a autoestima, é pulsão de vida. Agora com o novo complemento do look – a máscara.
Na leitura inspiradora de Flaubert: “...entreviam-se junto aos decotes vibrações de leques, lentos e suaves como o bater de asa de um pássaro ferido, com um roçagar de vestidos, as mulheres, ajeitando as saias, as mangas e os lenços, sentaram-se, umas ao lado das outras ...” causou-me uma sensação este verbo, repetido, tornado substantivo - o roçagar, o farfalhar das saias, em especial as de seda. Era preciso estar na moda. Não só no século XIX, como é retratada nesse romance, mas quase sempre foi assim.
Parece-me que esse roçagar só ocorre, hoje em dia, na alta costura, nos vestidos de luxo, naquela moda vista como arte, embora moda também seja arte. Imagino que roçagar possa ser como o das pétalas das flores tocando-se umas às outras ao vento, ou como o dos dedos da pessoa amada num afago de pele ...
“O que é moda não incomoda”, meu pai dizia. Ah, que sentença reveladora da escravidão aos ditames da moda no passado. Nos dias atuais, a imposição da moda incomoda, sim. Felizmente, surgem novos conceitos de elegância, roupas feitas com produtos sustentáveis, couro ecológico, peles sintéticas e novos materiais em pesquisa.
O luxo da moda de hoje é que as mulheres respiram l’air du temps. Não caem nas armadilhas das tendências. Conhecem o próprio corpo e vestem o que lhes fica bem. Usam da liberdade para ter um estilo, que é uma conquista individual.
São as sereias urbanas, são alternativas, seguem as regras da moda ao inverso, transgredindo-as. Uma minissaia e um salto altíssimo com um andar trôpego? Ou um vestido leve, com um All Star ou sapatilha para um andar felino? Essa liberdade de escolha não tem preço.
A apresentação da moda abraça todos os tipos de modelos atualmente
Sempre que se fala em moda, lembro do mundo fashion da França. Admiro muito as francesas, em especial as parisienses. Elas têm... je ne sais quoi... não sei bem o que as torna elegantes, charmosas, chiques e sensuais. Ou sei, pelo que vi, quando estive em Paris, e pelo que tenho lido e acompanhado desde ... os dezenove anos.
Inès de La Fressange – ícone da elegância na França – escreveu um guia de estilo intitulado “A Parisiense” e, por meio dele, nos conta o que aprendeu sobre estilo e beleza durante décadas de experiência no mundo da moda.
Segundo ela, os verbos transgredir e descombinar (me impressionaram como o já citado roçagar) fazem parte das regras, ou seja, resistir ao canto da sereia da moda. Ser a própria sereia urbana, digo eu. Conhecer os limites da moda.
Ela aconselha a compor um guarda-roupa que seja a nossa cara, com mistura de estilos e marcas diferentes, fugir dos conjuntos, do tudo combinado. Misturar coisas baratinhas, roupas compradas em viagens e alguma peça de grife. Ah, concordo. Na prática, afirmo, dá certo.
Fabi, minha filha, faz assim: é estilosa, mistura tudo, cria descombinações, desencava peças intrigantes em lojas populares e usa, por exemplo, uma bolsa Vitor Hugo com jeans. Bem verdade - sempre digo a ela que, mesmo vestida com um saco de aniagem, estaria muito bem (ela pergunta: “com ou sem acessórios?”).
Quando ela tinha seis anos de idade, permiti que saísse pela primeira vez sozinha, para ir comprar chicletes do outro lado da rua. Para tal, ela pediu emprestados alguns itens meus, de adulta, para a sua produção. Que graça: amarrou na cintura um lenço com franjas e uma gargantilha em conjunto com uma pulseira. Da sacada do apartamento, fiquei vigiando seu ir e vir. Esses acessórios mudaram completamente a imagem da menininha.
Para vestir-se bem, fala Inès, a autora do guia citado, o importante é ter poucas peças, porém, tudo organizado no closet. Um blazer, um Trench-coat, o vestido pretinho básico, o jeans perfeito, uma jaqueta de couro, a camiseta, o suéter azul-marinho. São os sete clássicos em seu guarda-roupa.
A parisiense adora o chique construído com básicos, mas o verdadeiro estilo está nos acessórios. Valorize-os. São fáceis de comprar. Um cinto. Uma bolsa. Um lenço. Bijouterias. Óculos escuros. O chique é construído com os básicos, mas todo o seu estilo nos acessórios.
É fato que nós, mulheres, gostamos de nos cuidar e de sermos valorizadas pelo que somos, se gordas, baixas, altas ou magras, intelectuais ou não, acima de tudo, desejamos ser respeitadas. Quanto a isso, cito novamente Flaubert: há um diálogo entre dois senhores em um jantar aristocrático, e eis que um deles discorre sobre a descoberta de um segredo após observar “uma pequena com penteado de esfinge, índigo debaixo dos olhos, cinábrio na face e bistre nas têmporas e uma gorda, com vestido cor de cereja, cruz de ouro, lenço de algodão, rosto gordo, onde tudo se espalha, tranquilo e luminoso, um autêntico Rubens”.
O segredo, revela-o assim: “Contudo, ambas são perfeitas. Então onde está o tipo? Que vem a ser uma bela mulher? Que vem a ser o belo? Ah! O belo!”. Que interessante - e hoje, os estilistas agora travam uma discussão sobre - o que é beleza? O que é idade? Pessoas comuns, tipos exóticos, as minorias, as mulheres acima dos 40 até... 80, 90, modelam nas campanhas de desfiles nas passarelas, nas grifes de perfumes, cosméticos. Gente normal, real. Lindo isso, não? Flaubert que o diga. “Que vem a ser o Belo?” Diga-me a leitora, o leitor.
Transgressões. Todos as cometemos. Especialmente em relação à moda no vestuário. Que tal um vestido de noite com bolsa de palha? Um colar de pérolas com camiseta? No lugar da estola (jogue-a fora), um suéter de lã sobre o vestido de baile? Se é que ainda existam bailes. Ou, duas echarpes, duas camisetas sobrepostas, dois cintos? Um jeans desgastado com camisa de seda? Nada de conjuntinhos. Essa é a ideia. Consumir cada vez menos, reutilizar, ressignificar, reciclar o vestuário (por que não mandar tingir de azul-marinho aquelas roupas que ama e usou muito?).
Para turbinar uma autêntica elegância, Yves Saint Laurent disse que “o que importa em um vestido é a mulher que o veste.”
“Você pode ser linda aos trinta anos, encantadora aos quarenta anos e irresistível para o resto da vida”. Grande Chanel.
O chique mesmo é que cada uma de nós encontre o melhor jeito de encantar-se com o próprio canto, uma autêntica sereia urbana, que tenha sempre um sorriso, autoconfiança, boa educação, gentileza, leveza, e muitas leituras.
A forma como nos vestimos desvela sentimentos e ocupa grande espaço em nossas vidas - é como uma segunda pele.
Marilia Frosi Galvão, professora, escritora e cronista
galvao.marilia@hotmail.com
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