O número de novas palavras, termos e estrangeirismos, que surgiram neste ano pandêmico, mostra que a língua é realmente um órgão vivo, verdadeiramente darwiniano. Palavras nascem e outras desaparecem, se adaptando à realidade.
Coronavirus, Covid-19, distanciamento social, lockdown, achatar a curva, racismo sistêmico, covidiota, china vírus, self-isolate, transmissão comunitária, zoom fadiga e clique o botão do mudo, entre outros, são termos que se incorporaram a diversos idiomas, como se seguissem uma transmutação e seleção natural, mostrando a forte influência da cultura norte-americana nas demais culturas do mundo.
Foi um ano difícil para os Estados Unidos. Além da terrível pandemia, desastres ambientais e sérios problemas raciais, que mostraram que a ferida da divisão não foi, nem de longe, curada, como muitos pensavam, com a eleição de Obama, há alguns anos.
Teorias da conspiração cresceram em ritmo pandêmico nas redes sociais. O país viveu a eleição mais polarizada desde a Guerra Civil e, pela primeira vez na história, um presidente não aceitou os resultados de uma eleição. Mas chegou o momento de esquecer tudo isso e agradecer pelas coisas boas que aconteceram no ano.
Na quarta quinta-feira de novembro celebra-se o feriado mais importante desta nação, o Dia de Ação de Graças, ou Thanksgiving, como chamam por aqui. Normalmente, as escolas têm uma semana de férias, pois muitos viajam para outros estados para visitar a família. Porém, na Flórida, na segunda e terça-feira, as escolas funcionaram para recuperar os dias perdidos na passagem de furacões.
Este feriado representa o lado bom da alma do americano. É celebrado por todos os credos e cores e teve origem há mais de 400 anos, quando os peregrinos (colonos ingleses) que chegaram à América, em 1620, se assentaram onde hoje fica o estado de Massachusetts. Sem saber, chegaram num momento tarde demais para plantar. Como tinham pouca comida, mais da metade deles morreu de fome no inverno.
Na primavera seguinte, os índios ensinaram os colonos a plantar milho, amoras e abóboras e tiveram uma colheita abundante no outono. Índios e colonos celebraram a colheita incluindo no cardápio perus selvagens. Nascia ali a tradição do Dia de Ação de Graças e os pratos tradicionais do feriado vêm daquela época: peru assado, molho de amoras e a terrível torta de abóbora doce.
Além dessa tradição antiga, algumas novas se criaram, como o perdão do peru pelo presidente, no qual o sortudo passa o resto da vida no zoológico de Washington, a parada da loja Macy’s em Nova Iorque e o dia inteiro de jogos de futebol americano na televisão.
Numa das primeiras celebrações que passamos aqui, reunimos alguns amigos, todos eles com família muito longe para uma viagem curta. A Lisi foi corajosa o suficiente em preparar um enorme peru após muitos vídeos de receitas no YouTube e consultoria do nosso amigo americano Steve, que conduziu a festa de acordo com tradições americanas. Nos reunimos à mesa, jantamos por volta das 5 da tarde e cada um dividiu graciosamente a sua gratidão pelo ano que passou.
E apesar de não sabermos contar direito os votos por aqui, o Dia de Ação de Graças é cheio de estatísticas: 40 milhões de perus foram consumidos este ano, tendo em média 14 quilos e três anos de vida, segundo a imprescindível Associação Nacional do Peru.
Até mesmo a ciência tem validado os benefícios da prática da gratidão. A doutora em psicologia da Universidade da Stanford, Emma Seppala, é uma das cientistas que mais têm feito sucesso por aqui, ao traduzir os achados da ciência para o público em geral, mostrando os benefícios da prática da gratidão, e como podemos aplicar ensinamentos da psicologia positiva para melhorar nossa vida.
Ela até fez um experimento com os veteranos de guerra do Afeganistão e do Iraque, que sofreram transtorno de estresse pós-traumático, e constatou que a prática reduz níveis de estresse e também houve entre os participantes do estudo significativas melhorias nas relações sociais. Uma das simples, mas efetivas dicas da Dra. Seppala, é ter o hábito de escrever num papel cinco coisas pelas quais você é grato naquele dia. Segundo estudos dela e de Martin Seligman, pai da psicologia positiva, a gratidão é como um músculo que deve ser exercitado, senão, atrofia e pode levar as pessoas a não reconhecer todas as benesses que temos na vida.
Sou infinitamente grato pela minha família ter saúde durante esta pandemia e pelos pesquisadores de biomedicina, juntamente com universidades e laboratórios, terem descoberto vacinas em tempo recorde e que vão nos dar um Dia de Ação de Graças em 2021 ainda mais agradecido. Quinta, foi o dia de praticar esta gratidão, de ver o copo meio cheio num ano em que poderia se vê-lo quase vazio. E, como diz o cartaz na igreja pertinho da nossa casa, apenas os perus não são gratos.
Gustavo Miotti é economista, sócio da Soprano e doutorando do Rollins College (Winter Park, Florida), onde pesquisa atitudes relativas à globalização nos EUA e China.
gmiotti@rollins.edu
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