Caxias do Sul 19/09/2024

O deserto dos Tártaros

Romance clássico de Dino Buzzati evoca a confluência das solitudes de dentro e de fora
Produzido por Paulo Damin, 26/05/2024 às 10:31:00
Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul
Foto: ARQUIVO PESSOAL

Esses dias em que falei na “literatura da estiagem”, o Marcos Fernando Kirst se lembrou d’O deserto dos Tártaros, um romance do Dino Buzzati, de 1940.

É um livro sobre deserto, em termos de paisagem. Mas mais do que isso me parece um livro sobre solidão. O que é também uma espécie de deserto, só que de cada um.

Esse romance do Buzzati poderia também servir pra falar de uma literatura da espera. Ou da desilusão. Sentimentos que nos levam, novamente, pra solidão. A solidão como símbolo da individualidade.

O deserto dos Tártaros pode ser lido em clave alegórica. O personagem do romance é um jovem militar que é mandado para uma fortaleza italiana que parece (ou está) fora do tempo e do espaço. As expectativas (os tais Tártaros vão atacar? será que eles existem?), as esperanças (será que o guri vai ter de ficar naquela prisão até quando?), tudo isso talvez esteja acontecendo só no espírito do personagem. E a gente é avisado disso logo nas primeiras páginas:

“Parecia que ele estava sentindo crescer em torno dele uma obscura trama que tentava detê-lo. Nenhum oficial se interessava minimamente por ele: que ficasse ou fosse embora, certo que para eles era indiferente. No entanto, uma força desconhecida trabalhava contra o seu retorno para a cidade; talvez surgisse da sua própria alma, sem que ele se desse conta.”

Para os guris, esse negócio de quartel pode ser assustador. Se, por um lado, a vida militar representa uma passagem à idade adulta, ela também representa a quebra da individualidade. Por isso é uma metáfora da solidão obrigatória, imposta de fora pra dentro. Para o Martín Fierro, arquétipo do homem livre sul-americano, o serviço militar é a origem de todas as desgraças:

“Não tem praga como um fortim

para que o homem padeça”

Já para o pacato jovem italiano (Giovanni Drogo é o nome dele), a vida militar é uma escolha. Aos poucos, ele vai gostando daquela solidão, vai mostrando que se trata de uma solidão buscada. A imagem de uma fortaleza se revela ideal: é o indivíduo resistindo em meio ao mundo.

O deserto dos Tártaros seria um livro sobre a confluência de dois tipos de solidão: uma que é imposta de fora e outra que vem de dentro da pessoa. Um romance psicológico, talvez.

Um romance kafkiano, só que com final. E que final. Um romance cujo desenlace ninguém pensaria em reescrever, de tão justo que ele é.

Paulo Damin é escritor, professor e tradutor em Caxias do Sul.

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