No primeiro livro de poesia de que participei, livro a que demos o título de Matrícula, compareço com um poema sobre o cavalo, com este desejo:
“Ah, não ser eu como o cavalo,
não ter um mundo sereno
em que me detenha tranquilo
e paste em segurança.”
A figura do cavalo retorna em todos meus livros de poesia. Nenhuma imagem se apoderou tanto de mim como essa do “cavalo branco na memória”, que pus num poema com o título de “Signo do Cavalo”.
O começo de tudo também tem ligação com a história de meu pai. Ele serviu o exército no Regimento de Cavalaria de Quaraí, cidade que faz fronteira com a vizinha Artigas, do Uruguai. Do quartel ele trouxe para a vida dele, e da família, uma série de regras e comportamentos, que aos poucos irei desfiando nestas memórias.
No que diz respeito ao cavalo, as regras eram bem claras. Devia ser tratado com alfafa e espigas de milho na estrebaria, no começo da noite, e ter um curral com grama e capim para pastar durante o dia. Devia ser escovado uma vez por semana e ter as crinas do pescoço, e a cauda, aparadas uma vez por mês. O cavalo devia também aprender a marchar: meu pai não tolerava cavalo que andasse no trote, como era comum na vizinhança. E devia também aprender a saltar, diante de uma poça de água ou no atravessar uma sanga.
Consequência de tudo isso era que cavalo de meu pai ninguém mais conseguia montar sem fazer fiasco. Era a cavalo, em marcha, que ia de Santa Teresa até a vila, como era chamada a sede de São Francisco de Paula, por conta de seus compromissos como professor municipal. A distância percorrida nessa viagem era de seis léguas, passando pelo Sumidouro, que era um atalho. Isso somava trinta quilômetros e quatro horas para ir e outras tantas para voltar, sobrando quatro horas para despachar e honrar compromissos na vila. Viagem que começava assim que clareava o dia e terminava, na volta, na boca da noite.
Lembro de uma vez em que meu pai levou um irmão meu até a vila para ser atendido pelo médico. A história toda começou com minha mãe comprando um cacho de bananas que um tropeiro trazia “da serra abaixo”, como a gente dizia, porque em Santa Teresa o frio não permitia cultivar bananeiras. Eram bananas verdes, para aguentarem o tranco da viagem, e ficavam uma semana à espera de ficarem maduras. Mas meu irmão, que devia ter uns três anos, sem ninguém perceber, comeu bananas ainda verdes. De noite começou a chorar e a se queixar de dor na barriga. Até que minha mãe atinou e foi conferir o cacho de bananas. Lá estava o problema!
Meu pai encilhou o cavalo branco, ainda de noite, e marchou para a vila, para a criança ser atendida de manhã cedo. A saída foi uma aflição para todos nós. Mas no final da tarde foi uma festa. Meu irmão voltava são e salvo. O médico que o atendeu fez uma lavagem intestinal com clister, como explicou meu pai. Esse médico era um pediatra chamado doutor Ordovás. Não se espantem, era o mesmo doutor Henrique Ordovás Filho, que depois se transferiu para Caxias e se tornou aqui uma celebridade, dando seu nome ao Centro de Cultura da cidade.
O cavalo branco de meu pai continuou fazendo parte de minha infância. O poema “O cavalo e o menino”, publicado em meu livro de poesia Meridiano, é todo ele recriação dessa experiência. Lá eu digo:
“A primeira lição de mundo,
em plena manhã da infância
havia de ser esse cavalo.
O imprevisto perfeito
era subir no seu lombo:
seria dócil às rédeas
ou tomaria nos dentes
o seu livre galope?
O senhor era o cavalo,
por mais atado que fosse
com cincha, freio e espora
- que ele aliás detestava.
.......
Escravo era o menino
despoticamente obrigado
a servir-lhe palha e bebida,
pentear-lhe pelos e crina
serviços mal tolerados
pois que deixava bem claro
não se vender por afagos.
Não é preciso dizer mais nada! A não ser que ele acabou me jogando num barranco, numa vez em que fiz a bobagem de montar nele. Fraturei o punho do braço esquerdo, que meu pai consertou aplicando clara de ovo batida e depois entalando o local com pequenas barras de madeira.
Por sinal, as atividades medicinais exercidas por meu pai eram tantas e tão variadas que merecem outro capítulo.
José Clemente Pozenato é escritor e autor do aclamado “O Quatrilho”, que foi adaptado ao teatro pelo grupo caxiense Miseri Coloni; ao cinema por Fábio Barreto, concorrendo ao Oscar e transformado em ópera.
pozenato@terra.com.br
Da série “Memórias de São Chico”, leia outro texto AQUI